O Sentido da falácia de Luiz Fux no voto que Absolveu Bolsonaro


 

por J. Berlange Andrade

Ao criminalizar a tentativa violenta de depor o governo, a lei pressupõe a prática de conduta tendente a remover o mandatário do cargo ocupado. E era Bolsonaro o mandatário do cargo ocupado!" [Min. Luiz Fux, no voto que absolveu Bolsonaro].

 Essa fala de Luiz Fux toca diretamente no cerne do conceito jurídico de “ataque à ordem democrática”, especialmente no contexto dos eventos de 8 de janeiro de 2023. Mas, é fala meramente retórica: como argumento não é logicamente consistente nem juridicamente sustentável.

 Pelo viés da lógica, o argumento pode ser decomposto assim:

Premissa 1: A lei pune quem “tenta depor o mandatário constitucionalmente investido no cargo”.

Premissa 2: Em 8 de janeiro de 2023, “Bolsonaro já não era mais o presidente em exercício no cargo” — Lula havia sido investido com a posse em 1º de janeiro.

Conclusão implícita: Como Bolsonaro “ainda estava no cargo até 31 de dezembro, seria absurdo remover-se a si mesmo do  cargo.” Conclusão explícita:  como “já não estava mais no cargo”, nos atos de 8 de janeiro, “não poderia ter como mobilizar poderes para depor o mandatário vigente, Lula”; logo, “não pode ser identificado como mandante do golpe contra o presidente Lula.”.

 Vamos desmontar questão ‘fuxiana’ em camadas, de modo que, retirado o véu da enganação, a falácia se envergonhe de si mesma. Os véus dizem com a ¹a lógica jurídica, ²a cronologia factual, ³a interpretação da norma e 4a artimanha retórica que revelam a nudez do argumento de Fux.

 Análise lógica do argumento releva o seguinte. O que Fux faz é uma “inversão proposicional”: o seu argumento sugere que, como Bolsonaro ainda era "o mandatário do cargo ocupado" até 31 de dezembro, então “quem estaria sendo atacado era ele”, e não Lula. Portanto, Bolsonaro era a vítima naquela época.

 Aqui reside a falácia do problema lógico: Na verdade, “em 8 de janeiro”, o mandatário “efetivamente investido no cargo” era Lula. O ataque às sedes dos Poderes no DF visava “impedir a continuidade da governabilidade do novo governo”, invadindo instituições para forçar sua derrubada. “Tomamos o poder. Lula subiu a rampa, mas não vai governar!”, gritavam os golpistas diante das câmeras de seus celulares.

 Portanto, do ponto de vista lógico-factual, o argumento não sustenta a ideia de que o alvo do golpe era Bolsonaro. Pelo contrário: o alvo era o novo governo legítimo.

  A análise jurídica começa indagando: qual o objeto da proteção da lei? Qual o bem protegido pelo Direito no conceito da lei aplicada ao caso? Sim, porque Fux tenta reduzir a questão a uma interpretação formal da lei; Desde Cóssio, sabemos que a lei é um conceito que o juiz usa para interpretar os fatos levados a seu conhecimento. É por isto que Moraes ameaçou de prender Aldo Rabelo: não queria entregar fatos, mas ensinar conceitos... A lei autoriza a prisão da testemunha que, advertida, insiste em tentar ‘fazer a cabeça do juiz’ manifestando julgamento próprio sobre os fatos. Olobby técnico é monopolio dos advotados das partes.

 Pois bem.  O tipo penal envolvido — como o art. 21 da antiga Lei de Segurança Nacional (7.170/1983) ou do atual art. 14 da Lei 14.197/2021 (Lei Antigolpe)  — não protege a uma pessoa física específica.  A defesa que todas as instituições do Estado têm o dever de fazer é “à ordem democrática como sistema institucional.

 O crime de “ataque ao Estado Democrático de Direito” não exige que o agressor tenha como objetivo pessoal "derrubar Lula" ou "manter Bolsonaro".

 

[O critério diz ao intérprete que a conduta criminosa é aquela que objetivesubverter o processo democrático legitimamente concluído”.  No caso, a sucessão presidencial foi legitimamente definida pelo TSEE no ato de proclamação do resultado eleitoral de 2022. Antes mesmo da eleição os bolsonaristas já anunciavam o projeto golpista: não aceitar a derrota para a Lula. “Se ele ganhar, não se diploma; se diplomado, não sobe a rampa; se subir, não toma posse; empossado, não governará”. A estratégia tinha por pressuposto deslegitimar as eleições, desde as urnas até a autoridade máxima do pleito, levando a rodo todo o sistema judiciário brasileiro.]

 No sentido da proposição acima, o STF tem entendido que:

O crime é “abstrato e formal”: protege a integridade das instituições.    O fato de os manifestantes acreditarem que “Bolsonaro foi roubado"  não descaracteriza o caráter ilegítimo da violência.  A “tomada de poder por meios não eleitorais” - é este o sentido nuclear do delito.  E, neste sentido, a caixa de pandora foi aberta em 2014 pela reação de inconformismo infantil de Aécio Neves.

Em julgamentos recentes, ministros como Barroso, Moraes e a ex Rosa Weber, repetidas vezes, enfatizaram que o que está em jogo “não é a lealdade a uma pessoa”, mas “ao processo eleitoral e à Constituição’.

 Ao reduzir o objeto protegido pela norma ao ‘fulanismo’, o argumento de Fux não passa de malabarismo ligeiro, como nas esquina dos semáforos.

 A cronologia dos fatos foi captada pela câmera fotográfica de Fux. Na verdade um processo é um fato em movimento. Só pode ser compreendido com ajuda de um dispositivo de vídeo.   Ora, o evento de 8 de janeiro não foi um ato isolado, mas o clímax de um processo que incluiu: ¹Campanha de desinformação sobre urnas eletrônicas desde antes da eleição; ²Recusa antecipada de reconhecer resultados (modelo Trump); ³Ameaças durante a diplomação (dez/2022);  4Paralisação administrativa nos últimos dias do governo Bolsonaro; 5Incitação pública a movimentos antidemocráticos; e 6Mobilização logística e financeira de grupos extremistas. 

 Ou seja: o golpe foi programado no tempo, e 8 de janeiro foi a execução concreta do caos, requisito factual que a lei conceitua como condição objetiva para a decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), via pela qual – disseram alguns assustados na web - os militares golpistas teriam suposta pretensão de permanecer na exceção por mais duas décadas novamente...

 Dizer que “Bolsonaro era o mandatário” em 8 de janeiro é “um equívoco factual e jurídico”. Ele “já tinha deixado o cargo”. O que restou foi uma ficção política alimentada por seus apoiadores: a crença de que ele – não obstante ter sido recusado pelas urnas -  deveria estar no poder.

 Se esse argumento foi usado para relativizar a gravidade do ataque institucional, então não se pode negar: Fux usou de um  artifício retórico. Apenas para absolver Bolsonaro e condenar a Cid e aos 400 ‘malucos’ que atenderam ao seu chamado? Não.  Possivelmente, também esteja no horizonte dos efeitos pretendidos: ¹ Criar ambiguidade jurídica onde não há; ² Minimizar a responsabilidade dos golpistas; ³ Sugerir que não houve crime contra o governo vigente, porque "ninguém estava sendo deposto".

  Como se vê, claramente, estamos diante de uma falácia da definição seletiva: escolher um instante no tempo (a saída de Bolsonaro) para negar a realidade do presente (a invasão de poderes contra um governo recém-instalado) ou negar a autoria e o papel de chefe da quadrilha..

 Contudo, se o argumento foi usado  como exercício crítico dentro do debate jurídico, para testar os limites da tipificação penal (ex: "quem é o sujeito passivo do crime?"), então pode ter valor dialético, ainda que não resistente à análise concreta do filme que Moraes exibiu, do começo ao fim, nas telas do mundo todo.

 Pena que a condenação dos golpistas não aponte para eventual distensão entre Moraes-Dino e Fux- Mendonça. A polarização persistirá e, infelizmente, com riscos de aumentar a distância entre as bolhas alimentadas pelas redes sociais das big techs: umas exibindo imagens estáticas e outras rodando vídeos e áudios.


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