I - Introdução
O início do
século 21 está marcado por intensas e
rápidas transformações que instabilizam a organização da vida social, abrindo uma clareira zetetica na selva que tende a engolir a estrutura o Estado Moderno. São fatos que geram ao mesmo tempo incertezas
e desencontros, esperanças e criatividades -
não só no plano da conduta individual dos sujeitos históricos, mas,
também, e inevitavelmente, nas relações institucionais entre os diversos
organismos que atuam para realizar as funções de Mercado e de Governo e, pois,
na administração dos interesses econômicos, políticos e sociais.
Há um amplo
consenso a indicar que as transformações que se verificam na vida econômica,
política e social, decorrem de três fenômenos básicos: as (1) inovações
tecnológicas, com ¹conseqüências no mundo do trabalho, e no ²âmbito das
comunicações interativas e da universalização da cultura e do conhecimento científico, filosófico e religioso;
a (2) crescente globalização, com a¹ universalização da competição, a ²formação de blocos comerciais e a
³descentralização e ocultação dos sistemas decisórios; bem como o (3) fim da
guerra fria que permitiu a ¹democratização de um conjunto de nações, o
²enfraquecimento das disputas geoestratégicas e a ³retomada dos pactos
internacionais em torno dos direitos dos cidadãos, tudo isso dentro de um
ambiente favorável à regionalização dos sistemas de governança, rumo a novas
unificações que promoverão o esmaecimento das nacionalidades.
Este período de
transformações já produz resultados que indicam tendências e rumos: ao lado dos vertiginosos progressos, importa
ao protagonismo dos sujeitos históricos focar as promessas não consolidadas, as
necessidades não atendidas e que, por isto mesmo, revelam as contradições e os conflitos que tendem a se acentuar numa
sociedade em mudança. Em cada um
desses fenômenos centrais que estão no olho do furacão transformador
manifestam-se, ao contraponto dos avanços,
as mazelas de atraso que resultam em manutenção e até retrocesso pela exclusão
de consumidores, pessoas e cidadãos dos benefícios do avanço civilizatório
(desigualdades sociais).
Grave na
situação em movimento é a dificuldade de administrar os conflitos concretos que
emergem dentro de um quadro em que os
critérios de interpretação da realidade fática (principalmente da conduta
humana) não mais obedecem à hegemonia do
pensamento único: a mudança, o movimento rápido, põe em cheque os dogmas,
os conceitos paradigmáticos que possibilitaram um mínimo de uniformização na ação para administração
dos casos problemáticos, principalmente no plano de padronização dos
comportamentos sociais: o instrumental do Estado Moderno padece de variado grau
de disfuncionalidade; na medida em que suas promessas, ora mais ora menos,
tornam-se difíceis de serem realizadas. O
distanciamento entre aquilo que se promete como resultado da ação do Estado
(justiça, paz, segurança, ordem, etc) e aquilo que, realmente, se entrega ao cidadão é às vezes abismal. A constatação de distanciamentos entre intenção e gesto tem contribuído para o
surgimento de um fenômeno que marca de angustia nossos dias: os agentes dos serviços públicos padeçam de
um mal-estar crescente: a sensação
de se estar trabalhando num imenso faz-de-contas. Isso
está acontecendo nas escolas, com os professores; nas delegacias, com os
policiais, nos postos de saúde com médicos e enfermeiras, no legislativo com os
parlamentares, no judiciário e em outros setores do serviço público.
É nesse terreno escorregadio, nessa clareira de uma
encruzilhada histórica cheia de ambiguidades, que nos encontramos neste momento;
tempo que, aliás, se assemelha em muito à situação
experimentada na transição da Sociedade Feudal para o Estado Moderno. Só que há uma diferença radical: nos faltam hoje ‘iluminados-iluministas’ e
um respectivo programa de racionalidade
instrumental para a reestruturação
da sociedade.
Fala-se em situação de anomia para referir à
condição em que se encontram as pessoas diante
dos novos desafios que as incertezas das relações sociais promovem abrindo
vias a um futuro que se apresenta
proximamente escatológico e, pois, ameaçador. Sem dúvida, tudo que parecia sólido, parece
agora estar se desmanchando no ar. A vida social depende da organização que
define a divisão de riquezas, dos poderes e dos papéis sociais e individuais.
Precisa-se de padrões de conhecimento e
de relacionamentos com vistas a garantir a funcionalidade da cooperação
e da competição para a convivência humana.
Porém, estamos
dentro de uma torre de babel em que o conhecimento está condicionado por níveis tão elevados de especialização que
somente os especialistas, em cada
área específica, poderão estar aptos a
entender suas próprias linguagens, definições e conceitos.
A
interferência de uma diversidade sem
precedentes de filosofias, religiões, crenças, mitos, técnicas e métodos, estão a influenciar, muito frequentemente
pelo regime do modismo, indivíduos e grupos ‘tribais’. Como
resultado dessa interação entre as
diversidades, na sociedade, tende a
se enfraquecer os padrões normativos de conduta baseados na positividade do
direito. Se o iluminismo proclamou a
morte de Deus (sociedade organizada com base na fé judaico-cristã),
os pós-modernos estão proclamando a
morte da Razão. A autoridade racional-instrumentalista está em xeque. Os
indivíduos tendem a entrar em conflito na medida em que encontram dificuldades para conformar-se às
contraditórias e disfuncionais exigências de antigas normas sociais positivas
ou costumeiras diante da velocidade das
transformações do ritmo e modo de vida da sociedade de tecnologia avançada.
Esse estado de progressiva anomia e niilismo
tem por efeito imediato deixar em aberto todas as verdades, relativizando tudo que se manifeste como
realidade, inclusive, contaminando
de dúvidas normas e valores, reclamando, assim, a predominância de um ambiente
de negociações, no qual domina a
necessidade do diálogo para construção de regras ad hoc.
Estou convencido de que este é o sentido do caminho que se rasga para o amanhã próximo,
numa nova etapa de transição dos usos e
costumes históricos, com a maioria
das massas populares passando a atuar sob um pano de fundo dominado pela fé
religiosa (controle social baseado mais fortemente na ética moral, inobstante a instrumentalidade
da ética jurídica: será que Deus interferirá diretamente para salvar aos mais
fracos?).
Não obstante esse quadro disforme em movimento, o
desafio dos agentes que operam o aparelho do Estado tem a ver com o
instante do agora. Induvidoso que os núcleos diretivos da sociedade
brasileira devam trabalhar movidos pelo dever de promover aperfeiçoamentos nas relações sociais. Deitando o foco nos
fatos que se dão na realidade
globalizada, o que os cientistas sociais progressistas têm obtido como norte é a forte probabilidade de que existe, do
ponto de vista desta perspectiva, pelo menos duas tarefas imediatas: incorporar novos contingentes
populacionais na participação do mercado de trabalho e de consumo (promover a igualdade enquanto consumidor) e incluí-los no rol de proteção dos
direitos humanos políticos e sociais (promover a igualdade enquanto
cidadania).
Como todo
processo de transformação implica
criatividades – portanto, inseguranças,
tensões e resistências – é
necessário que se esteja preparado para lidar com situação de crise. No plano diretivo, trata-se de manter sob controle os efeitos conflitivos do processo de
mudança naquilo em que possa afetar a
funcionalidade interna do sistema de controle social: tolerar um certo nível de criatividade
e de discricionariedade nas iniciativas
dos agentes, sem perder de vista as tarefas do agora e a unidade da governança:
divisão do trabalho fundada na
especialização e nos níveis crescentes de responsabilidade decisória,
transitando do administrativo para o
político, mediante comportamento
baseado no método cooperativo, com abstenção
ao impulso competitivo ou de iconoclastia da reputação de outros órgãos do sistema, seja por motivo pessoal, corporativo ou funcional
(a questão da fidelidade institucional
que já está pulverizada pelo corporativismo das categorias setoriais).
É dentro do
horizonte desse esquema de leitura da realidade
que estas informações são prestadas à autoridade administrativo-correcional
requisitante.
É, evidentemente, um complemento à informação já
suficientemente prestada pela DD juíza substituta, na medida em que o conjunto
do objeto a ser conhecido é formado de
atos judiciais praticados pelo juízo da comarca, no exercício de suas
funções jurisdicionais, nos quais estão
expostos os fundamentos da solução que escolheu para regular os casos que lhe
foram postos ao conhecimento e decidibilidade jurisdicional. Embora não exista uma prescrição normativa
que preveja o uso do instrumento informal
utilizado pela autoridade policial, como recurso para manifestar
inconformismo, ou resistência, em face
de decisão da autoridade jurisdicional à que estão subordinados os serviços da
polícia judiciária, considero-me no dever
de prestar informações sobre fatos que pairam, como móvel incessante, ao pano de fundo dos acontecimentos que
levaram à montagem informal daquele procedimento administrativo. Esclareço. Ao fazer distinção entre ‘ato jurisdicional’ e ‘problema de natureza social’, a
informação prestada assume ou supõe que
exista alguma questão fática transcendente ao gesto praticado pela autoridade
policial que se relacione com o comportamento pessoal do juiz, também
faticamente, transcendente aos seus atos
jurisdicionais. Seria um equívoco tomar problemas de relacionamento interpessoal
conflituoso com a dimensão de
‘problemas sociais’, a menos que esses ‘problemas’ refiram à conduta de um dos setores naquilo em que
visa promover mudança na opinião pública comunitária relativamente à fenômeno de poder baseado em recurso de
reputação e prestígio social.
Efetivamente, o conteúdo desta informação reporta fatos
vivenciados – dentro e fora dos processos criminais – e que historicamente
têm estabelecido conexões que interferem diretamente determinando a variação da qualidade do relacionamento profissional do
juízo de direito com a delegacia de polícia e, em menor incidência, com o destacamento da Polícia Militar.
No entanto -
oportuno é relevar - a colocação do
horizonte amplo de visão de um mundo em transformação estrutural, atende à
conveniência de dar aos fatos um máximo
de objetividade e impessoalidade. Ou
seja, não se pretende, aqui, tratar
desses supostos ‘problemas sociais’ como questão de ordem pessoal, senão como conflitos de relacionamento entre sujeitos institucionais cuja importância
está relacionada à potencialidade de desembocar em repercussões, não na promoção ou manutenção da ordem pública
social ou econômica, mas na esfera
da opinião pública comunitária, por um lado e, por outro, na esfera das conexões que existem entre o trabalho
policial e a função jurisdicional,
do ponto de vista da qualidade do
produto instrumental que deve resultar dessas atividades cooperativas.
Mesmo aqui, nestes dois campos restritos, ver-se-á que o problema está relacionado a uma sequência de fatos pontuais em
que a gênese do conflito está na circunstância de o juiz ter feito prevalecer a
necessária prudência e o proclamado respeito à dignidade humana como
princípios orientadores da atividade
penal e processual-penal, naquilo em
que a legalidade da atividade policial-judiciária
é tributária da monopolista função jurisdicional, qual seja, o Poder de conhecer e julgar para o fim de
aplicar a sanção penal.
Ao olhar destas informações, trata-se de problemas de Relação de Poder
cuja compreensão perpassa pela condição de ser
um fenômeno que está ocorrendo com uma certa generalidade, no âmbito local e
nacional, entre Polícia e Justiça,
num momento singular de nossa história, em que se experimenta inédita amplitude
no exercício das liberdades democráticas, principalmente sob o
anonimato da participação nas páginas da Internet.
Este ambiente favorece naturalmente o surgimento de iniciativas (quase arroubos) pessoais ou corporativas que, em última
análise, externam desejo de fazer conformar as
respostas decisórias aos efeitos das transformações às exigências conservadoras que estão
nos conteúdos e finalidades proclamadas
pelas normas positivas que orientam
a execução imediata das leis –
isto é o conflito que se dá, quase sempre, por influência de crenças e paradigmas ideológicos que se
tornam menos dogmáticos e mais zeteticos, em tempos de fortes transformações econômicas,
políticas e sociais. É o que
acontece frequentemente: muitos dos
programas de controle social revelam-se ás
vezes inadequados e às vezes disfuncionais à realidade desses novos tempos e
dessas novas relações globalizadas, democratizadas e tecnologicamente
virtualizadas.
Os
agentes jurisdicionais que estão localizados na estrutura central do Estado para pensar teórica e principiologicamente as soluções de casos e problemas sociais
pelo prisma da coerência sistêmico-constitucional da legalidade dos atos
que o Estado pratica em confronto com as
garantias do cidadão e dos grupos sociais. Então, agentes políticos da jurisdição lidam com desafios de ordem geral e
institucional relacionados não só à Ordem Pública, mas, principalmente, à
manutenção e desenvolvimento do Estado Constitucional e Democrático de Direito.
Portanto, problemas bem diferentes daqueles agentes executores que lidam com casos
e problemas específicos de transgressão da lei penal, selecionados que são para
executar direta e concretamente a vontade do sistema de controle social
com pouquíssima margem de
discricionariedade ou inovação porque estreita
a sua margem de interpretação da lei (agentes
da administração policial).
Em uma síntese
apertada, este trabalho de informação versa
sobre casos de Conflito de Poder que se originam por impulso de uma ideia de senso
comum que facilmente se estabelece e
se propaga no seio da opinião pública, funcionando como fator de captação de prestígio social: “a
polícia prende e a justiça solta”.
Assume-se que, no eixo dessa
expressão de marketing, atua uma
intencionalidade que revela atitude de infidelidade institucional: ferir
a reputação dos órgãos do Poder Judiciário.
Nesse sentido, no
contexto das reações de temor e perplexidade causadas pelo fato de o juízo ter
concedido liberdade provisória a três policiais civis que estão sendo
processados na comarca de Terenos, a
conduta corporativista de alguns policiais civis e militares, nos últimos
dias do mês de dezembro (recesso) e durante o mês de janeiro (férias do juiz
titular) não se restringiu a discursos:
os comportamentos públicos, omissivos,
atingiram um nível de escâncaras e de acinte tais que pode ter-se configurado
crime de prevaricação.
Para uma
compreensão mais clara do estágio em que se desenrolam as relações institucionais e profissionais entre a jurisdição e as
unidades policiais locais, convém reportar o quadro situacional da atuação
do sistema de controle das condutas sociais, operado localmente com a restrita
exclusividade do aparelho policial, a unidade de polícia repressiva sob a
administração de autoridade dotada de formação jurídica e o destacamento da
polícia administrativa comandado por um sargento/PM.
A instalação da vara única da comarca, aliado ao fato
de que o juiz de direito instalou residência na sua sede, acarretou imediatas consequências
no sentido de mudanças que ajustariam a
conduta policial para aproximar os procedimentos aos requisitos da legalidade e
do respeito às garantias dos cidadãos em face do Estado, ao tempo em que a proximidade do olhar crítico-fiscalizador
reduziu a discricionariedade e/ou levou à ocultação ou à dissimulação eventuais
práticas de abuso de poder.
Por outro lado, a fixação do território jurisdicional
subtraído à comarca Capital, implicou um
aumento de demanda muito acima da capacidade da administração policial
gerenciar o controle dos delitos, porque a atuação das polícias federal e rodoviária
federal no posto da BR 262, na entrada da zona urbana de Terenos, monopolizou a capacidade de produtividade da
delegacia de polícia civil, uma vez que o
Poder Executivo não ampliou a proporcionalidade da oferta dos recursos
materiais, humanos, tecnológicos ou financeiros. A fixação de todo o contingente
plantonista dentro da delegacia, delegado e escrivão cuidando dos autos de
flagrante de tráfico de entorpecente e de outros ‘delitos da rodovia’, e o
agente de polícia exercendo função de carcereiro dos respectivos presos, trouxe
como resultado imediato o completo
abandono da função repressiva da polícia civil em face da pequena criminalidade
que cresceu no âmbito comunitário.
A criação do Conselho de Segurança da comunidade, por
iniciativa da Jurisdição, com ampliação
das funções ao modo de promover a integração dos órgãos do sistema de controle
social e destes com a comunidade urbana e rural, constitui medida eficaz para o encaminhamento de soluções práticas aos
problemas experimentados na primeira fase de instalação da comarca, bem
como serviu de fórum promovedor de novos
usos e costumes na medida em que promoveu palestras e seminários de fins
educativos para a convivência cívica e para o aprendizado sobre o papel e o uso
das instituições e dos órgãos do sistema (polícia, ministério público,
defensoria pública, advocacia e judiciário).
Seguem-se relatos sobre fatos que se situam na base dessa compreensão.
I. Usos e Costumes - rompimento histórico
Historicamente, a atuação das polícias (civil e militar) em Terenos tem
passado por rápidas e sensíveis transformações, transitando de uma situação de ampla
discricionariedade e condição de influência
dos poderes locais (político-econômico de perfil coronelista e
patrimonialista) para um regime de
vinculação à legalidade com fidelidade institucional (controle externo do
Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB e do Judiciário).
De acordo com
a percepção do advogado mais antigo e que representa a OAB na comarca, Dr.
Rubens Batista Vilalba – conforme várias vezes reportado e analisado nas
reuniões do Conselho de Segurança da Comunidade e também em audiências – o marco que assinala o divisor do movimento
de transformação que vai caracterizar mudanças na atuação policial é a
instalação da comarca em 2001. Essa
constatação é compartilhada por agentes de outros setores da vida comunitária: alguns vereadores, membros de igrejas e da
maçonaria, conforme testemunhos espontâneos diversas vezes reiterados em
reuniões públicas e sociais.
Faz parte de
um certo folclore local, relatar casos e
elogiar as soluções sumárias dos ‘bons tempos’, época em que a polícia tinha
toda ‘autoridade’ e ‘liberdade’ para ‘fazer justiça’, ou seja, usando a coerção arbitrária, violenta e
discriminadamente; se proclama abertamente que naquele tempo era bom porque reinava a paz promovida pelo terror:
a polícia matava ‘bandidos’, ‘ladrões’ e
‘vagabundos’ e, depois, o chefe político promovia um churrasco para comemorar. O uso do ‘chicote’ rabo-de-tatu no
pelourinho (suporte da caixa d’água) e
do ‘afogamento’ de jovens transgressores nas águas do córrego teria sido uma
prática trivial e banalizada – além de famosa, claro. Isso independia do caráter ou do estilo
pessoal de quem estivesse à frente da delegacia ou do destacamento da PM. Comenta-se que esses agentes eram tragados pelo
poder coronelista e condicionados, pela força de uma tradição autoritária, a um estilo de dominação política
provinciana e vingativa. Essas
práticas eram, assim, costumeiras e estimuladas
pelas pessoas que delas se beneficiavam, evidentemente, na posição de elite
dominante. Tanto este estado de
coisas era do gosto do grupo que exercia o poder político, que uma prestigiada
liderança local resistiu bravamente à instalação da comarca, interpondo dificuldades
e se abstendo da cooperação; ao final, vencido, promoveu ato público (passeata)
que se concentrou à frente do Fórum e comandou palavras de ordem contra a
inauguração do prédio e a instalação da Justiça, fato que desencadeou uma firme
reação do Des. Rêmolo Letteriello, quando descerrava a placa de inauguração (o presidente do Tribunal de justiça gritou
bem alto, expulsando a claque e mandando o coronel político tomar ‘naquele
lugar’, em italiano, claro).
Com a chegada
dos agentes que coadministram a jurisdição (Juiz, Promotor de Justiça e
Defensor Público), a partir de fevereiro de 2001, começou-se a construir na comunidade
o chamado equilibro de pesos e contrapesos que caracteriza a divisão de funções
estatais dentro do regime constitucional do Estado Democrático de Direito. No primeiro momento, tendo fixado residência
na sede da comarca, o juiz de direito realizou palestras nas escolas e clubes
divulgando a presença do Poder Judiciário estadual no município, seu
significado, sua finalidade e utilidade social e o seu mecanismo de
funcionamento, colocando a jurisdição como instrumento de promoção da paz e da
harmonia social à disposição dos jurisdicionados e a serviço da comunidade.
A partir do
segundo semestre de 2002, avolumaram-se as reclamações cobrando resultados na
atuação policial por causa do aumento do número de pequenos delitos (furtos, principalmente); não havia
identificação de autoria, prisão ou recuperação de bens furtados, ficando os
responsáveis impunes. Reuniões entre os
membros dos diversos segmentos do sistema de controle social levaram ao
diagnóstico: as duas polícias estavam com insuficiência de agentes em seus
quadros e sem viaturas e equipamentos adequados para o policiamento preventivo
e repressivo.
Na delegacia de polícia atuavam, diariamente, apenas
três agentes: o delegado, o escrivão e um agente. Este exercia função de
carcereiro, cuidando de duas celas superlotadas de pessoas presas no Posto da
PRF; os outros dois agentes passavam o dia inteiro lavrando autos de prisão em
flagrante e boletins de ocorrência. A polícia judiciária estava aprisionada a
seus misteres burocráticos, dentro da delegacia, e, por isto, não podia sir
para investigar crime e nem perseguir infratores. Dependia quase exclusivamente da colaboração espontânea
de membros da comunidade, quase sempre as vítimas. Por outro lado, pequenos infratores ou
usuários de drogas prestavam as informações que subsidiavam pedidos de prisões
preventivas ou provisórias, numa discutível e perigosa atividade de parceria –
o que implicava troca e compensações não autorizadas pela lei.
Uma vistoria
realizada pelo juízo e pela promotoria de justiça, no final de 2002, a partir
da denúncia de uma mulher que afirmava ter levado um caso de crime de racismo
sem que a polícia lavrasse o BO, constatou a existência de um número muito
grande de Boas que foram arquivados sem a correlativa instauração de Inquérito
Policial. Parecia haver critério
seletivo de natureza discricionária, com forte conotação censitária que
distinguia ricos de pobres para fins de tratamento privilegiado: algumas
notícias geravam Boas; alguns Boas evoluíam para IP ou TCO; nem todos os
Inquéritos chegavam ao Judiciário.
Na mesma época, também em vistoria do Juízo e do MP,
ficou evidenciado que – dos três delitos de maior ocorrência de flagrante no
Posto da PRF levados à delegacia de Terenos – somente os casos de tráfico de
entorpecente chegavam ao estádio da ação penal. Roubo e furto de automóveis e
‘golpe do seguro’ eram ‘resolvidos’ na própria delegacia: as agências de
seguros faziam a identificação e vistoria dos veículos apreendidos e, dali
mesmo, eram recuperados, entregues sem formalidades procedimentais e, muito
provavelmente, recompensados com prêmios em dinheiro.
Visando ordenar
e canalizar racionalmente as críticas e reclamações dirigidas ao sistema, bem
como debater e colher sugestões construtivas à solução dos problemas, criou-se,
em março de 2003, o Conselho de Segurança e Controle Social Comunitário de
Terenos. O órgão consultivo – constituído
pela representação entidades
governamentais e da sociedade civil
organizada – foi constituído para promover “a participação popular da comunidade no que respeita às leis, aos usos
e costumes da cultura local, na identificação, análise, discussão e solução dos
problemas comunitários de segurança pública, visando a melhoria da qualidade de
vida da população e ao aperfeiçoamento dos recursos humanos, materiais,
financeiros e logísticos à atuação do sistema jurisdicional e de segurança
pública em nível preventivo, repressivo e recuperativo”, com competência
para “debater e propor medidas e
políticas públicas de aperfeiçoamento dos hábitos, usos e costumes visando o
pleno desenvolvimento das potencialidades humanas dos membros da comunidade
terenense, bem como de prevenção e combate às práticas de desvio da ordem
pública”.
Os problemas
que dependiam de esforços para a transformação dos usos e costumes não ortodoxos
praticados nos primórdios da formação da comarca de Terenos foram equacionados.
Também os novos problemas que foram causados com a instalação da comarca
(tenha-se em conta que a primeira consequência, foi a extinção da vara
especializada de tráfico de entorpecentes da Capital, cuja maior demanda tinha
origem no Posto Policial da PRF de Terenos), foram resolvidos dentro das
possibilidades dos recursos disponíveis, inclusive com o desaparecimento das
críticas infundadas que facilmente inflava de sopro negativa a opinião pública
formada nas pontas de esquinas da cidade.
Nesse sentido, o jurisdicionado – por suas lideranças
representativas - conheceu a causa e as
limitações de falta de recursos materiais e humanos da delegacia de Polícia
para lidar com os ‘delitos da rodovia’,
e, dentro do Conselho Comunitário, a sociedade
civil organizada discutiu e encaminhou medidas que possibilitaram à polícia
civil dispor de mais tempo para trabalhar no combate aos casos de
transgressões praticados dentro do âmbito das comunidades urbana e rural da
comarca de Terenos.
Visitas e
reivindicações foram feitas às autoridades dos três Poderes estaduais. A principal medida adotada é aquela que ainda
está em vigência disciplinando os encaminhamentos especiais, de ordem
administrativa, para a lavratura de
flagrantes, prisões e apreensões realizadas no Posto Policial da PRF de Terenos,
conforme instituído no Acordo de Cooperação Técnica envolvendo as polícias
especializadas da Capital, o Ministério Público e o foro da comarca de Terenos
(ver Anexo 01).
II – Discricionariedade, Abuso de Poder
e Crime: o vaivém do clamor popular.
Foi afirmado acima que a proximidade do olhar
crítico-fiscalizador das autoridades cumpriu a função de reduzir a
discricionariedade e o abuso de poder que caracterizou durante algum tempo a
prática policial e que se traduzia em uso de medidas autoritárias que se
distanciavam dos postulados ético-legais, alcançando exclusivamente a população
pobre e ignara.
Quando a
comarca foi instalada, era costume de as autoridades locais residirem na
Capital onde permaneciam, em regra, durante a noite e no final de semana. Não obstante o juiz de direito e, mais
recentemente, o prefeito e o delgado de polícia terem fixado residência na sede
da comarca, a presença dessas autoridades na cidade, durante o final de semana
não é contínua, principalmente durante o período do dia quando se deslocam à
Capital para visitar familiares ou participar de eventos sociais ou
culturais. Por outro lado, sabe-se que
o uso do poder, seja na forma pura ou corrupta de exercício, gera um tipo de satisfação pessoal ou
coletiva difícil de se renunciar.
Daí que, das práticas ilegais de
abuso de poder reprimidas pela
presença da autoridade jurisdicional, algumas permaneceram em uso, sob nova forma de ocultação: aos fins de
semana, sabe-se agora, mesmo estando na folga, vários agentes lotados na
delegacia de Terenos para ali convergiam
e, associados ao agente plantonista, usavam o distintivo policial para cometer
abusos e até crimes, a pretexto de estarem cumprindo a lei, conforme tem sido apurado pela Corregedoria-Geral de
Polícia a partir do instante em que “a
casa desses policiais caiu”.
Narra a
denúncia do processo 047.09.0321-3 que, no final da manhã do dia 3 de março de
2009, na sede da delegacia de polícia
civil da cidade de Terenos, cinco policiais (escrivão, investigadores, perito),
em razão da função pública que exerciam,
se uniram em unidade de desígnios para exigirem para si vantagem
indevida no valor de 20 mil Reais –
exercendo coação arbitrária em desvio de poder sobre o cidadão campesino
L.A.S. – para que não fosse registrado
BO pelos crimes de (¹) posse irregular de arma de fogo e (²) tráfico ilícito de
entorpecente. A vítima é um
proprietário rural cujas terras e residência estão localizadas próximas da zona
urbana. Era um domingo e o ruralista veio à cidade, como relatada no depoimento
policial prestado no dia 03/03/09: “por volta das 10h30 estava rumando para a
casa de seu diarista Júlio, oportunidade em que foi abordado pelos policiais
civis – M., R. e J. – os quais o algemaram e o conduziram para a delegacia onde
passaram a ameaça-lo de prisão, dizendo que depoente estava ‘mexendo com
drogas’ e que tinha armas em casa, sendo que passaram a exigir um ‘acerto’. Que
o declarante desse 20 mil Reais para que não fizessem boletim de ocorrência e
‘acabassem com tudo’; depois de conversarem bastante, o acordo foi fechado em
12.800 Reais. Na delegacia, além dos
três policiais citados, também estavam E. e A., os quais também participaram da
exigência do dinheiro. O declarante ratifica integralmente o termo de
declarações prestado na Corregedoria na data de ontem (2/3/9), oportunidade em
que descreveu com detalhes toda a situação ocorrida envolvendo os policiais e a
exigência do dinheiro. Após concordar em fazer o pagamento dos 12.800 Reais,
depois de já ter entregue a quantia de 1.800 Reais, restando o pagamento de
11.000 Reais, ficou acertado com o policial J. que tal valor seria entregue no
dia de hoje (3/3/9) por volta das 10h30, no ‘Coqueiral’, estrada de terra às
margens da via férrea, na saída para Aquidauana, local escolhido de comum
acordo entre o declarante e J. . O declarante informou a J. que o pagamento
seria feito hoje porque não havia conseguido levantar o dinheiro na data de
ontem, segunda-feira, já que o banco deveria fazer a previsão de saque, o que
foi aceito pelo mesmo, sendo que hoje, por volta das 10h00, quando o banco
abriu, o declarante sacou a quantia de 11.000 mil Reais, sendo 110 notas de 100
Reais, as quais foram amarradas com uma ‘borrachinha’ própria e com esse valor
foi para o local indicado, isso por volta das 10h30 a 11h00. Quando estava no
local combinado com J., recebeu um telefonema em seu celular 9943-9969, onde o
interlocutor – o qual acredita ter sido o E. – pediu que a entrega fosse feita
mais à frente do local combinado, sendo que quando se dirigia para o local,
telefonou para o delegado Clever informando sobre a mudança e quando estava com
este no telefone sobre o banco no viva voz, parou a seu lado ‘um pouquinho mais
para frente’ uma caminhonete preta S10 com os policiais J. e E., sendo que o
primeiro era quem dirigia a caminhonete e o segundo estava no banco do carona,
sendo que o que de fato fez, após apenas abrir o vidro de seu lado, sendo que o
dinheiro caiu no interior da cabine daquela caminhonete. O declarante estava
muito nervoso e assustado, com toda aquela situação, motivo pelo qual se
afastou daqueles policiais, não presenciando como ocorreu a prisão dos mesmos.
Informou que durante a conversa havida na delegacia no domingo os policiais
diziam que o dinheiro era para ser dividido em seis pessoas, por isso não
poderiam baixar muito o valor “senão era pouca coisa para cada um”.
A sexta pessoa
aí referida é o comparsa dos policiais civis, o comerciante M.V.P.M., que
disponibilizou a sua contracorrente do Bradesco para que a vítima transferisse
no caixa eletrônico da agência da Av Afonso Pena, na capital, 600 Reais que,
depois, este comerciante transferiu para a conta dos policiais (o comerciante
funcionava, claramente, como caixa 2 para lavagem do dinheiro dos policiais
corruptos).
Os policiais estavam bem informados quanto a eficácia
de sua operação: durante todo o processo de negociação entre os policiais e o
ruralista, aqueles diziam a este que “tinham conhecimento de que o produtor
rural havia recebido dinheiro relativo a venda de um imóvel rural”.
A prisão em
flagrante dos dois policiais civis, com o imediato afastamento do quadro local
dos demais denunciados no processo de concussão (c.c. formação de quadrilha),
desencadeou uma incontrolável onda de revolta contra os agentes policial civis,
seguida de uma verdadeira enxurrada de notícias de casos de abuso de poder
cujos relatos foram canalizados para a Corregedoria-Geral de Polícia Civil
durante alguns meses, gerando inquéritos suplementares, inclusive. A partir de junho/2009, os policiais presos
em flagrante deram início a estratégia de pretensão de responder ao processo em
liberdade. Até outubro/2009 ingressaram com dois pedidos de liberdade
provisória (primeiro grau) e três pedidos de habeas corpus (segundo grau),
todos indeferidos. O pedido de Exame de
insanidade mental ajuizado em setembro também teve seu intento frustrado por
decisão deste juízo singular.
Durante o
período de nove meses em que os policiais estiveram na peleja para livrar-se da
prisão, outro embate também estava sendo travado na condução do processo: a
vítima do crime de concussão e outras testemunhas chaves sofriam ameaças e
perseguições para recuarem nas posições ou se omitirem do testemunho
judicial.
A decretação da prisão preventiva do policial A. M.B.,
em 17/10/09, foi uma medida preventiva que traduziu em muito as exigências de
resposta à altura dos anseios da comunidade, conforme está mencionado na
decisão da fl. 694 daquele processo: “Embora
o requerente possua residência fixa e trabalho honesto, a conveniência da
instrução criminal diz respeito à preservação da legitimidade e do prestígio do
Poder Judiciário: garantir rapidez, economia e eficácia à resposta penal –
atendendo à pretensão da sociedade e à segurança jurídica dos cidadãos. Assim,
o requerente, conforme expôs brilhantemente o Promotor de Justiça, gera grande
risco à instrução criminal, uma vez que as testemunhas arroladas no processo
principal ainda não foram ouvidas em juízo, demonstrando-se a necessidade de
preserva-las de qualquer intimidação, para que não haja prejuízo a instrução
criminal. Outrossim, conforme expôs o
Ministério Público, o investigado responde a outro processo crime, demonstrando
possuir maus antecedentes e contumácia na prática de delitos, evidenciando o desprezo
para com a sociedade, a quem deveria proteger, o que reclama providências
enérgicas da Justiça para garantir a ordem pública, acautelando o meio social,
garantindo a credibilidade da justiça, em crimes que provoquem grande clamor
popular, como é o caso do presente, conforme já explanado na decisão praticada
nos autos principais.”
Em 5 de
novembro de 2009, porém, decisão liminar em HC distribuído à 1ª Turma Criminal
do TJMS, determinou a transferência dos policiais E. e J. para a Clínica Carandá,
porque – segundo o laudo médico – os pacientes corriam risco iminente de
suicídio e grau depressivo elevado. Na
audiência de Instrução e Julgamento, realizada em 18.11.09, o juízo optou por
conceder aos réus presos o direito de responder ao processo em liberdade
(conteúdo da decisão, Anexo 2).
A notícia da
libertação dos três policiais teria causado um misto de espanto e de medo no
seio da comunidade. O mesmo senso comum
que festejara a prisão dos policiais como fato definitivo agora mostrava
indignação, também fundada em equívoco: acreditava-se
que os policiais teriam sido julgados, absolvidos e, por isto, postos em
liberdades. Essa interpretação
equivocada dos fatos processuais, pelo senso comum, é corriqueira. Nenhum alarme quanto a isso, pois logo o
tempo e o desdobramento do processo cuidam de restaurar a verdade e a tranquilidade
jurídica se impõe por obra da sentença.
O certo é que, quando se iniciou o recesso forense de
dezembro/2009, o assunto já ingressara em nível de aparente normalidade. Mas, o afastamento do juiz titular da comarca
pelo longo período acumulado de recesso e férias, parece ter ocasionado o recrudescimento de forças críticas ao
Judiciário, que rapidamente ganharam volume e terreno em aparente forma de
pressão.
III – Delinquência, vizinhança e
parcerias: Ordem Pública versus Segurança Jurídica.
Ao retornar das
férias em fevereiro de 2010, o juiz titular da comarca deparou-se com um quadro
novo, tipicamente unificado e orientado. Em todas as visitas e lugares que frequentava
as pessoas comentavam e reclamavam, dizendo que a polícia não estava mais
trabalhando e que os ladrões estavam tomando conta da cidade. Imediatamente, ficou claro que se tratava de
uma campanha e que esta tinha até slogan: “a
polícia prende e a justiça solta os bandidos”.
No primeiro momento, o juiz julgou que se tratava de
mero desdobramento do fato de ter concedido liberdade provisória aos policiais
na segunda quinzena do mês de novembro/2009.
Depois, ouvindo as histórias, constatou que a campanha estava
relacionada a outros fatos que se verificaram entre o início de dezembro e o
final do mês de janeiro: dois conhecidos delinquentes (usuários de drogas)
passaram a intensificar suas atividades, praticando pequenos furtos,
ostensivamente à luz do dia. Enquanto
isso, em vez de reprimir a esses delinquentes, tanto agentes da Polícia Civil
quanto da Polícia Militar adotaram, também ostensivamente, atitude de omissão:
acionados pelas vítimas, diziam “não se pode
fazer nada, porque se os prendessem a Justiça os iria soltar”. Os delinquentes eram J, V e um tal Z que morava na companhia deste
último.
As pessoas
estavam perplexas porque esses dois rapazes estavam praticando furto tranquilos
e escancaradamente, à luz do dia, entrando e saindo pela porta da frente das
casas sem o menor grau de constrangimento ou medo. Quando a polícia comparecida ao local do
crime, os agentes se recusavam a perseguir o ladrão, alegando que não
adiantaria ir atrás e prender o bandido, porque o juiz o soltaria em
seguida. Essa atitude era comum à
Polícia Civil e à Polícia Militar, como se pode constatar em provas aqui
documentadas.
Com efeito, o conteúdo do e-mail que foi usado como
motivo para a deflagração do procedimento que deu causa a esta informação é
revelador da atitude da polícia civil, quando M.F.A.M relata que “a polícia sabe quem são os ladrões, mas, no
entanto, alega não poderem fazer nada, pois prendem num dia e no outro a
justiça manda soltá-los”. A atitude
de alguns membros da Polícia Militar, nesse período, também está descrita e
documentada no termo de declaração prestado por ALLO, conteúdo do Anexo 3: “a dona da casa chamou a polícia, eles
chegaram uns 10 minutos depois; olharam a porta que tinha sido arrombada, viram
os chumbinhos que o cara tinha derrubado no chão; falaram que eles não podiam
fazer nada, porque eles prendiam, mas o juiz soltava; eles estavam na viatura e
usavam farda azul; eram uns cinco policiais; a vizinha com seu esposo foi até a
delegacia e prestaram queixa; lá na delegacia, o delegado falou para o casal o
seguinte: ‘já que a sua vizinha trabalha na casa do juiz, aproveita e diz para
ela dizer para ele prender e não soltar, porque a gente prende e ele solta’.
Não conhece o policial que explicou que não podia fazer nada porque o juiz iria
soltar”.
Quem são J. e V.,
os protagonistas dessa onda que ameaçava a preservação da Ordem Pública? Valdir era um dos vizinhos que se aboletavam
numa casa ao lado da sede da Delegacia de Polícia de Terenos para dividir
produtos de furtos e consumir drogas. J. é pessoa conhecida do ambiente policial
rotulado como ‘colaborador’, tendo sido usado como preparador de ‘flagrantes’
(ver Anexo 4). J. e V. se uniram a uma
terceira pessoa e juntos praticavam pequenos furtos, meio pelo qual garantiam o
acesso à pasta-base de cocaína de que provavelmente sejam dependentes. Entre aquela casa de drogados e a delegacia
que lhe fazia sombras existia mais que uma relação de vizinhança. Existia um
certo nível de parceria, na medida em que J. frequentava aquela casa – para
compartilhar furtos e drogas – e também atuava como colaborador da Polícia.
Com relação a V.,
nascido em 1990, é um jovem cujos pais, alcoólatras, separados, perderam o
controle disciplinar sobre os filhos que se tornaram transgressores, drogados,
marginalizados do mercado de trabalho e da vida social comunitária. V. responde
a vários processos por delito de furto e de uso de drogas. É a crônica policial dele que está historiada
no documento que a autoridade policial apresentou, em 4.12.09, como fundamento
do pedido de prisão preventiva para “a
garantia da ordem pública”, uma vez que “não pretende interromper voluntariamente sua promissora carreira”. Ora, V. estivera preso por mais de quatro
messes entre maio de setembro de 2009 em decorrência de flagrante por furto de
uma bicicleta. Em 25.06.09 o juízo indeferiu um seu pedido de liberdade
provisória (Anexo 5), mas, reiterado o pedido, foi posto em liberdade por
decisão praticada em 17.09.09. Estava
preso há mais de 120 dias na Delegacia de Polícia sem sequer ter sido citado
para responder à ação. Este ato
jurisdicional, como todas as outras decisões praticadas pelo juízo em relação a
seus casos (a partir de julho/2008 até dezembro/2009), foi devidamente
fundamentado.
São essas as
pessoas referidas pelo Sr. M.M, que também se declarou vizinho da Delegacia de
Polícia de Terenos. Este, é a pessoa que
enviou e-mail ao Exmo. Sr. Secretário de Estado de Segurança Pública, pedindo
providências, falando de “Insegurança Pública”.
Atitude bem distanciada do costume local.
Ora, em Terenos, todos sabem que no Fórum o juiz
pratica uma “Justiça Comunitária”, significando isto que o acesso à autoridade
jurisdicional é amplamente democrático e informal. O juiz recebe a todos,
indistintamente, sempre com atenção, cortesia e solicitude. Porém, esse senhor Marcos não chegou a
procurar o Ministério Público ou qualquer setor do Fórum da Comarca de Terenos
para pedir providências para vencer à omissão da Polícia em relação ao seu
problema de vizinhança com a delegacia de Polícia. Aliás, por conta do círculo de proximidade
das pessoas que aparecem nesta fita, o que todos esses fatos revelam é a grande probabilidade de que a iniciativa desse
cidadão tenha sido estimulada por
quem o tenha orientado na redação do conteúdo do e-mail.
Com efeito. Percebe-se, a toda evidência, que o
suposto ‘problema social’ relacionado
com a noticiada ‘quebra da ordem pública’
da cidade de Terenos/MS é, na verdade, um conjunto de conexões e articulações que
se deram na vizinhança da delegacia de polícia, envolvendo pessoas conhecidas daquele ambiente que existia enquanto aquela Casa
esteve transformada em ‘aparelho’ de uso dos policiais que se mantiveram na
resistência praticando arbitrariedades e abusos de poder, atuando de forma clandestina contra os
interesses da comunidade.
Não havia em
Terenos um ‘problema social’ relacionado com fatos reais de quebra da ‘Ordem
Pública’. O que houve foi uma tentativa de exercício de poder de pressão da autoridade policial, visando exercer influência
no comportamento profissional do titular do Poder Jurisdicional. Tão logo o juiz de direito percebeu que podia estar
diante de um movimento coordenado, tendente a atingir a reputação social do Poder Judiciário, assumiu o microfone da Rádio Comunitária
Vitória – à véspera do Carnaval/2010 – e chamou o comportamento policial à
ordem.
No dia 12 de fevereiro, numa entrevista para falar sobre a participação e a segurança de
crianças e adolescentes naquelas festas, o juiz de Direito quebrou o roteiro
da pauta e introduziu o tema que vinha sendo propagado. “É verdade que a polícia prende e o juiz solta os bandidos? ” A resposta foi veemente e segura: isto é
falso. Pela Constituição e leis brasileiras, só quem pode prender e soltar qualquer cidadão é o Poder Judiciário.
E isto é assim para que todos, na sociedade, possam viver sua vida, exercer seu trabalho, com tranquilidade e
segurança jurídica. Há uma única exceção em que a Polícia pode
prender uma pessoa: quando esta é surpreendida estando a praticar um crime
ou, tendo acabado de praticar, ainda se
encontre no local ou daí tenha acabado de se afastar em fuga. É a chamada
prisão em flagrante. Essa exceção, porém, não é um privilégio da Polícia. Qualquer cidadão, qualquer pessoa do povo, pode igualmente prender em flagrante um criminoso. Há apenas uma diferença: a qualquer do povo
essa autorização para prender em flagrante é
uma faculdade. A pessoa só prende se quiser. Já para o agente policial, isto não é uma faculdade, é uma obrigação:
o Policial tem o dever, indeclinável, de
prender o criminoso. O policial não tem o direito de escolher se
prende ou não, se vai atrás do bandido ou não. Ele tem de ir atrás, pedindo
reforço se necessário. E se o policial não cumpre esse dever? É simples: o policial que se omite de prender
em flagrante ou de ir atrás do bandido está praticando um crime: prevaricação! Nesse caso, estará sujeito a responder processo-crime. Basta
que qualquer do povo procure o Ministério Público ou o juiz no Fórum para
denunciar. No fórum, o Promotor de Justiça, o Juiz e o Defensor Público sempre
estão de portas abertas para receber denúncias e reclamações contra os maus
policiais. Nada justifica a atitude da polícia que comparece ao local do crime
para dizer que não vai fazer nada porque se prender o bandido o juiz vem depois
e o solta. Ora, vivemos num Estado organizado
hierarquicamente, em que os agentes cumprem funções sociais necessárias
com base numa relação de Poder Institucionalizado, divididos entre dirigentes
e dirigidos, órgãos decisórios e órgãos executivos, agentes políticos e agentes administrativos. A principal tarefa do juiz é julgar através de sentença. Muito frequentemente,
as partes recorrem e o Tribunal modifica e até anula a decisão do Juiz. Já
imaginou, se o juiz – inconformado com a decisão do Tribunal que modifica a sua
– parasse de sentenciar? E a dona de casa, deixasse de limpar a casa ou de lavar as louças, porque o marido e
os filhos vêm, em seguida, e sujam tudo
de novo? E o sacerdote deixasse de ouvir o arrependimento do
pecador? Se cada um deixasse de cumprir renovadamente o seu dever, nada mais no
mundo funcionaria! Então, vou convocar a
polícia, seus dirigentes, a que abandonem essa postura irresponsável que
corresponde, na prática, a uma atitude de infidelidade institucional. A
polícia civil ponha-se na rua e prenda
em flagrante esses pequenos delinquentes, que estão muito próximo de suas
garras. E se quiser que o juiz
decrete a prisão preventiva de alguém, que
apresente fatos reais e concretos que sirvam de verdadeiros fundamentos
jurídicos. Não é porque a pessoa seja pobre ou miserável que qualquer pretexto
servirá para restringir-lhe a liberdade. A liberdade é um valor universal
que está no centro da dignidade da pessoa humana e na base da construção do Estado
de Direito. Não é um valor somente reconhecido aos ricos e poderosos
economicamente. Do mesmo modo que o Supremo Tribunal protege a liberdade de um
banqueiro, aqui, em Terenos, a Justiça protegerá a liberdade de um pobre ou de
um drogado. São todos iguais perante a
lei. A jurisdição não está atuando aqui para servir de
instrumento para a consolidação dos preconceitos e do autoritarismo! Reconhecemos que a Polícia, principalmente a
Civil, carece de recursos materiais, humanos e tecnológicos – estando os
policiais experimentando graves limitações na sua capacidade de reprimir o
crime com meios técnicos mais eficazes.
Mas, convenhamos, em nenhum lugar
do mundo é tão fácil à polícia montar campana ou esquema simples qualquer, para
prender ladrões; mas, quando os ladrões chegam com o produto do crime e
armazenam, para consumir, tranquilamente, do outro lado do muro da delegacia de
polícia, tem alguma coisa muito errada acontecendo! Parece que existem setores da Polícia que têm alimentado rancores, decepções e
inconformismos com a atuação do Poder Judiciário. Saibam que o Juiz de Terenos, como a gigantesca maioria dos juízes
brasileiros, não tem medo de pressão; somos profissionais qualificados para fazer valer a lei
mediante a competência exclusiva para interpretar e aplicar o Direito. Gozamos de garantias constitucionais,
juntamente com o Ministério Público, para
atuar com liberdade, independência e coragem!
Essas garantias são dadas ao juiz, mas o beneficiado é o povo, principalmente o povo que está sujeito a
toda sorte de opressão por serem pobres e desprotegidos. Nós os
juízes não temos medo de imprensa, de ‘picareli’, seja lá do que for. Cumprimos nosso dever e pronto. Doa a quem
doer. Agora, vamos exigir que cada um cumpra também o seu dever, e sem erros e sem
manipulações. E quem achar que pode
se omitir de cumprir o seu dever, vai responder criminalmente por isso. Não
vão ser manobras infantis ou ingênuas de exercício de poder não
institucionalizado que vão
determinar o comportamento do juiz. Tenham certeza disso. Só a
consciência moral do juiz serve de referência para sua conduta profissional!
Quanto ao povo de Terenos, já sabem: as portas do fórum estão abertas. Denuncie,
reclame sem medo! A Justiça, aqui,
está do seu lado; existe para servir a comunidade, não a Tribunais! ”
No dia 17 de
fevereiro de 2009 J.G.C. foi preso em flagrante, logo após cometer o furto de
uma furadeira industrial com a respectiva broca e uma serra circular, estando
na posse dos objetos no momento da prisão.
No dia 25 de
março de 2009, após a Defensoria Pública alegar que o preso JGC estaria
experimentando crise de abstinência dentro da cela da delegacia de polícia, o
juízo resolveu entrevista-lo pessoalmente, como forma de checar o quadro de relatado.
Dessa ocasião, ficou registrado, dentre
outros assuntos, a seguinte fala: “...é
dependente de droga, pasta base; nunca tinha sido preso, embora o delegado soubesse da sua situação; ele até
pediu ajuda para internação do depoente;
o delegado também pediu ajuda para dar uns flagrantes, para o depoente entregar
as ‘bocas’ daqui de Terenos; está aqui há dois anos; ficou seis meses na
fazenda Olhos Verdes, trabalhando; depois que voltou para cá, andou praticando
alguns pequenos furtos; um pouco tirava para usar droga e outro para levar para
casa, tem quatro filhos pequenos e uma esposa que está grávida; conhece o V.,
vulgo Elton; sabe que ele e o J. moravam ao lado da delegacia de polícia; eles
eram usuários de pasta base também, usavam juntos a droga; o Zezinho está preso e o Elton sumiu para
Campo Grande quando marcaram uma audiência aqui no Fórum, em janeiro, nunca
mais voltou; eles também praticavam furtos; o depoente algumas vezes
participava com eles; a polícia sabia desses furtos; o depoente foi preso algumas vezes, mas depois a polícia liberava, não
tinha papel e nem processo; os outros também foram presos algumas vezes, assinaram papéis e foram embora; andou
mais com essa dupla nos meses de junho a agosto do ano passado;” (Ver Anexo
6)
A onda de furtos
cessou. O assunto “polícia prende, juiz
solta” sumiu da pauta comunitária. Os antigos vizinhos da Delegacia de
Polícia mudaram de endereço. Houve,
ainda, uma derradeira manifestação popular, mas por inércia de outro
acontecimento: na madrugada da terça-feira de Carnaval, 16.02.10, C. P. efetuou
vários disparos que levaram a óbito Roberto, trabalhador que foi confundido com
uma terceira pessoa que tinha agredido àquele no baile. O juízo decretou a
prisão preventiva do homicida e a prisão temporária de dois outros companheiros
que estiveram na companhia deste naquela madrugada. No dia em que o autor dos disparos foi preso,
em frente à Delegacia de Polícia foi praticado um ato público, reunindo
familiares e amigos da vítima, com a presença de uma equipe de TV (Programa
Picarelli): os populares estariam
protestando contra a possibilidade
de o juiz vir a soltar os assassinos... Ninguém soube explicar quem os tinha convocado
e reunido...
IV – Funções Sociais: prestígio,
reputação, legitimidade e poder social.
“Às vezes os
confrontos são necessários. Acho que naquele momento foi necessário. Ali se
mostrou que havia um tipo de conúbio espúrio de polícia, juiz e membro do
Ministério Público. Era como a jabuticaba, só existiria no Brasil: a polícia de
alguma forma mandaria em toda a cena judiciária. ” (Juiz STF Gilmar Mendes/
na Folha de S.Paulo).
Do ponto de
vista da atuação ou do exercício da função jurisdicional, não existe e nunca existiu problema de ‘natureza social’ relacionado
com alteração ou ameaça à Ordem Pública na comunidade de Terenos. Insatisfações e reclamações dos destinatários
contra os serviços públicos sempre existiram e sempre existirão. Conviver
com a crítica e com a pressão popular é um imperativo da democracia. É essa
insaciável pretensão que a sociedade
tem, de viver e conviver sob o manto da ordem
púbica e da segurança jurídica, que funciona como referência à prática e ao aperfeiçoamento
de nosso trabalho.
Por outro lado, não
há motivo para maiores ilusões: nenhuma
das práticas perversas que o homem inventou na história da humanidade e que
tenha sido proibida ou combatida, quer pela moral religiosa ou pela coercibilidade
jurídica, jamais foi ou será extinta da
face da terra.
Então, a
prostituição, as drogas, o homicídio, os furtos jamais serão extintos. Nesse sentido, o viver e o possuir carregam sempre consigo uma margem de risco! O
desafio do sistema de controle social não é ‘zerar’ essa margem de risco, mas
sim, de mantê-la sob um nível de baixa incidência, isto é, num nível razoável de tolerância.
Vivemos num
País no qual a elite estimula e promove a desigualdade social: numa sociedade
marcada por uma profunda diferença entre classes sociais, determinada por
diferentes níveis de vida que se opõem devido a um fosso que se abre entre
ricos e pobres. Pois bem, neste ambiente, a questão da ameaça ao exercício da propriedade relativamente ao patrimônio móvel
põe a atividade policial sob o mais elevado risco de disfuncionalidade. Numa época de crescente e complexa
criminalidade, querer exigir da polícia
que mobilize a escassez de seus recursos humanos, materiais e tecnológicos para
recuperar aparelhos eletrônicos de alta rotatividade e obsolescência é não ter
consciência dos verdadeiros e graves problemas desta época de capitalismo
industrial avançado, de globalização dos mercados e hegemonia
incontrastável dos banqueiros e rentistas, marcada
pela falsa facilidade de acesso ao consumo por um perverso mecanismo de
escravização do povo às fontes de crediário. Esse sistema já se apropriou do controle
policial, colocando-o a seu serviço
exclusivo e não mais da virtude e dos valores morais!
Aqui na
comunidade, porém, o fato é que a polícia vive sob permanente pressão de dois
mundos que se antagonizam quanto ao tipo de exigência que impõe: de um lado, o
povo cobrando resultado e eficiência, significando isto que todos os
perturbadores da tranquilidade alheia sejam
postos atrás das grades das celas.
De outro, os operadores intelectuais do Direito cobrando respeito aos direitos humanos, à liberdade e ao postulado da
presunção de inocência. Entre um polo
e outro desse embate, os problemas de
ordem prática causados por um sistema carcerário falido. É
assim que a sociedade brasileira experimenta o inferno da disfuncionalidade do
sistema de controle social neste momento de transição histórica para a
pós-modernidade. É cada vez maior a distância entre as
intenções e os gestos. O Estado perde,
aceleradamente, a capacidade de cumprir com suas promessas no campo da
Segurança Pública e da Segurança jurídica.
No seio da sociedade, porém, o povo ignora a situação de faz de contas:
continua acreditando que a prisão seja uma panaceia capaz de resolver todos os
seus problemas...
Para além dos
problemas de disfuncionalidade institucional, aqui em Terenos os agentes policiais lotados na Delegacia,
constituindo organização criminosa, conseguiram a proeza de reduzir o prestígio
e a credibilidade da instituição a níveis altamente comprometedores.
Do ponto de vista do controle jurisdicional, são inúmeras
as decisões e sentenças que esbarram
diante da impossibilidade de aproveitar as provas que foram produzidas pela
polícia para instruir o processo. A perda da confiança no trabalho profissional
da polícia judiciária representa, por si só, um problema da mais alta gravidade, na medida em que põe o órgão
jurisdicional numa posição de tensão permanente, obrigando ao juiz acercar-se
de cuidados para não ser levado a erro ou não se sentir enganado. Trabalha-se sob um clima de desconfiança, no
sentido de se conviver com uma permanente expectativa de temor ao erro. Em ambiente assim, de alta manipulação, o desafio do juiz não é mais o de buscar a justiça, mas sim, de livrar-se
do erro judiciário (conferir, a título de exemplificação os Anexos 9 e
10, onde estão relatadas absurdas
situações de manipulação das provas, tanto visando a condenação de uns, quanto
a absolvição de outros – sempre os mesmos...PPP)
Esse ambiente
tornou-se mais agudo e pesado após a prisão dos policiais acusados de
concussão. É evidente que a relação
jurisdição-polícia nos últimos 12 meses vem experimentando um processo de
crescente tensão, de silencioso confronto entre o aparelho policial e o órgão
jurisdicional. Na origem dos desencontros, basicamente, disputas caracterizadas por divergências
entre a autoridade policial e a autoridade jurisdicional, quanto ao emprego do tratamento penal que cada núcleo
julgou adequado dar a alguns casos notórios ocorridos nos últimos três anos. Em termos práticos, a questão é esta: a polícia, desprovida de recursos
financeiros, técnicos e tecnológicos, tem por prática trabalhar a investigação
do crime e a produção da prova mediante a prisão do flagrado ou do
suspeito. Esse ato de prender o indiciado adquire diversos sentidos, uns culturalmente
simbólicos voltados para a perspectiva ambiental em que se forma a opinião
pública e, outros, tecnicamente valorativos, do ponto de vista do controle que
o sistema jurisdicional faz quanto a validade e eficácia das prisões e de
outras medidas coercitivas que a polícia tem adotado para além de seu papel
institucional, como o recurso de
usar à mídia e à Internet visando atingir o senso comum e, assim, antecipar
sanções e tornando poderosa a ação policial, no imaginário popular. No horizonte das contradições que se formam
do embate e que resulta de práticas que extrapolam o caráter de
instrumentalidade processual, é que
se desenvolvem as tensões, típicas de um processo de disputa de poder: quem é
“melhor para a sociedade”, a polícia ou o judiciário?
Esse confronto passa
a ser favorecido, de um lado, pelo fato
de a sociedade brasileira estar experimentando um fluxo amplo de
práticas democráticas, de
debates sociais (Internet) e
diálogos institucionais (Conselhos, Fóruns, Sindicatos e Associações); de outro, porque – no plano onde
conhecimento e ação precisam se encontrar
– o esmaecimento dos paradigmas
leva ao enfraquecimento dos dogmas e essa
situação de anomia causa estragos de monta: enfraquece o comando, põe em dúvida a proposição da autoridade, quando
não, dá-se o pior: detona a própria autoridade moral do agente público.
A autoridade, insistentemente bombardeada por uma
mídia conduzida por pessoas que estão se especializando em assassinar
reputações, como forma de obter maior audiência e dinheiro, torna-se refém de
meia dúzia de famílias, obrigada a responder às pressões políticas e econômicas
que essa mídia exerce, ao mesmo tempo em que proclama para si mais liberdade
para mentir e manipular ao povo, como forma de evitar efeitos de
responsabilidade política e econômica pelos danos que ajuda causar ao País e a
seu povo.
Nesse ambiente favorável aos abusos, assistimos à evolução de uma parceria
tática entre polícia e mídia jornalística – jornais e TV - que
leva à espetacularização de prisões “intuitivas” e a condenações “sumárias”, da
parte do senso comum, por julgamentos superficiais. Suprime-se,
por essa via que afasta as dificuldades impostas pelo tempo e pelo espaço, os tribunais institucionais da
racionalidade instrumental do Estado Moderno; transfere-se o jogo da Justiça para o ambiente difuso em que os preconceitos
do senso comum encontram o leito fácil da vazão dos instintos primitivos de
vingança e autoritarismo.
Infelizmente, esse
quadro de transformações que responde a impulsos individualistas, de dúvidas e incertezas
tem paralisado a muitos de nós. As reações, quando se dão, também se pautam
por respostas individualistas de caráter ad hoc. Isto é uma das características das mudanças
de ciclos históricos nas sociedades organizadas: em meio à crise de transição paradigmática, cada sujeito histórico
defende a instrumentalidade funcional de seu posto (seu cargo ou sua função)
contra os ataques de usurpação da função ou do poder que se concentra
juridicamente na esfera de seu órgão institucional.
Aparentemente, algum setor policial tem considerado uma
forma de negação de seu trabalho o fato de juízes e tribunais terem assumido posição mais coerente no
sentido de fazer valer os direitos e garantias que protegem a liberdade e
consagram o princípio de inocência,
libertando presos comuns como forma
de combater abusos que se tem
cometido com o excesso de prisões cautelares e provisórias. Na verdade, observa-se que quanto maior é o status das pessoas envolvidas como
suspeitas da autoria de crime, seja na esfera econômica, política ou social,
maior é o interesse da mídia no caso. A
opinião pública tem sede de ‘sangue-puro’.
A prisão de ‘figuras e figurões’ representa um marketing importante para
afirmação da reputação social da polícia.
Aqui na comarca
de Terenos as tensões entre polícia e
jurisdição tem surgido e se ampliado dentro de um confronto em que o juízo
criminal tem adotado medidas concretas para evitar a montagem de situações em
que as dignidades das pessoas possam sofrer danos irreparáveis por conta de
‘assassinatos de reputação’.
A
primeira dessas situações ocorreu em 2007, quando
o irmão de um vereador foi assassinado durante uma caçada na zona rural e a
autoridade policial representou por sua prisão preventiva, estando toda mídia da Capital mobilizada para divulgar o ato da prisão. O juízo considerou
frágeis e insubsistentes os motivos e as provas apresentadas como fundamento da
cautela. A autoridade policial
insistiu no pedido da prisão e pediu reconsideração da decisão, o que novamente foi indeferido. Quando o juiz titular se afastou para gozo de
férias, o pedido foi novamente formulado
ao juiz substituto. Quando retornou
das férias, o juiz repreendeu à
autoridade policial pela atitude de querer fazer valer a sua vontade com uso de
um recurso de poder baseado na manipulação ao novo juiz, que desconhecia a
trama dos fatos (A decisão que causou inconformismo ao policial está no
Anexo 7).
A segunda crise
ocorreu em 2009, quando a autoridade policial tornou concreta a ameaça que fez de divulgar o nome e a foto de um
indiciado em crime de estupro por violência presumida, caso este não
comparece à delegacia para ser qualificado e interrogado no prazo que concedeu
ao advogado. A fotografia do funcionário do Banco do Brasil foi publicada em páginas
da Internet contendo no peito a inscrição “PROCURADO” e a indicação de
Estuprador. O Advogado apresentou reclamação ao juízo criminal e pediu providências
para coibir o abuso. O delegado foi chamado a prestar esclarecimentos e o
juízo decidiu determinar que a notícia e a imagem do indiciado fossem
imediatamente retirada da mídia, concedendo-lhe salvo conduto. O delegado de
polícia representou junto ao Ministério Público requerendo o afastamento do
juízo do processo, sob a alegação de suspeição.
O juiz manteve-se na presidência
do processo (ver Anexo 8).
Finalmente,
ainda existem focos de tensão na relação do juízo com a polícia por conta dos
desdobramentos do processo em que cinco
policiais civis respondem por concussão e formação de quadrilha. A vítima e as testemunhas apresentaram
sucessivas representações indicando
provas que apontam para o fato de virem sofrendo ameaças e perturbações ao
longo do processo. O Ministério
Público chegou a requerer a adoção de medidas de proteção à testemunha, mas o
próprio advogado da vítima se opõe a providência tão drástica. As provas dessas
ameaças têm sido encaminhadas à Corregedoria-Geral de polícia para
investigações e providências. A Polícia
Militar informou a este juízo que instaurou sindicância para apurar eventual
conduta de abuso de poder de algum de seus quadros, tendo em conta a circunstância de a vítima do processo de concussão ter
sido, após a prisão dos policiais civis, abordado sucessiva e sistematicamente
nas ruas da cidade quando dirigia sua caminhonete e, em todas essas abordagens,
ter sido notificado de multa por mero capricho e pretexto de Policiais
Militares.
A chácara onde
reside e trabalha um dos filhos do juiz de direito, na zona rural próxima à
cidade de Terenos, foi, durante um período de cerca de 30 dias, objeto de
visitas desconhecidas através de três ou quatro pessoas que ali compareciam à
noite, dentro de um veículo sem placas, e ficavam parados próximo ao portão de
entrada. Depois que foram instalados
equipamentos de filmagem e de segurança, as visitas cessaram.
Conclusão.
Somente a
circunstância de a sociedade brasileira estar transitando historicamente por um
período de enfraquecimento dos dogmas que estão na base da estrutura do Estado
Moderno torna compreensível que uma autoridade republicana, do porte de um juiz
de direito, tenha que sacrificar o tempo que dedicaria à produção de sua
atividade institucional – adjudicação de conflitos pelo método de interpretação
e aplicação da lei – para ficar
prestando esclarecimentos sobre os fundamentos fáticos de suas decisões e
sentenças jurisdicionais que - por
exigência constitucional do sistema de controle social – são necessariamente
fundamentadas. Uma decisão
jurisdicional vale e se justifica pelo seu próprio pronunciamento. Este só é
jurisdicional se fundamentado juridicamente.
O sistema da família Ocidental do Direito está solidamente
institucionalizado, desde uma tradição que remonta à Roma: à falibilidade da
decisão jurisdicional existe um só sistema de revisão: o recursal, a ser
operado por partícipes do processo: o Ministério Público e a Advocacia, dentro
do devido processo legal.
Este juízo entende que o documento encaminhado à
Corregedoria-Geral de Justiça por redirecionamento da Diretoria de Polícia da
Capital constitui mais um recurso de uso
de poder não institucionalizado, utilizado pela autoridade policial de Terenos,
dentro da estratégia política de fazer valer sua pretensão de determinar
o comportamento do juiz criminal da comarca de Terenos relativamente à aprovação de seus atos administrativos ou
discricionários. Como se pode
constatar do depoimento colhido por este juízo no Anexo 3, o delegado de
polícia utilizou-se de outros recursos – como
o de mandar recados por pessoas que têm acesso pessoal ao círculo de amizade do
juiz. Na verdade, o documento
deflagrador do procedimento administrativo constitui prova suficiente para indicar que a autoridade policial possa ter
estado cometendo crime de prevaricação: deixou de praticar indevidamente ato de seu ofício, para satisfazer
interesse ou sentimento pessoal, quando passou a divulgar perante a
comunidade a ideia de que ‘os furtos estavam fora de controle porque a
justiça soltava os bandidos que a polícia prendia’. (Quando, na
verdade, J. declarou, dentro da delegacia de polícia, que era o próprio
delegado que o prendia e o soltava, sem mesmo lavrar boletim de
ocorrência, em troca de informações... Só disto?).
Do mesmo modo, existe forte indício de que alguns
policiais militares também teriam aderido a tal campanha que visa atingir à
reputação do Poder Judiciário no seio da comunidade, quando adotaram o mesmo
tipo de conduta omissiva: recusaram-se a perseguir o autor de um furto alegando
que não adiantaria nada prendê-lo, porque o juiz, em seguida, iria soltá-lo. (O comando da PM local, todos sabem, está sob
‘controle político’ da autoridade municipal... Isto faz parte de seu ‘capital’
político)
Por tais motivos, comunico à Douta Corregedoria-Geral
de Justiça que este juízo está encaminhando, na data de hoje, expediente ao
representante do Ministério Público local para que adote as medidas que julgar
necessárias para apuração das responsabilidades quanto a eventual configuração
do crime de prevaricação em face dos policiais civis e militares que sejam identificados
como eventuais transgressores do tipo do Art. 319 do Código Penal.
Terenos/MS, 30
de abril de 2009.
Juiz José Berlange Andrade
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