O QUE É A CONSCIÊNCIA NEGRA






 

por Jose Berlange Andrade

[20 de novembro de 2025]

 

 

Com homenagem a um velho companheiro de lutas, o jornalista Márcio Leal.

 

Consciência Negra é uma ferramenta política, isto é, um instrumento para ser usado nas relações sociais por um grupo de pessoas que necessita agir, coletivamente, para superar as condições de diferenciação que foram intencionalmente construídas para excluí-las de benefícios materiais, imateriais e de direitos sociais. 

 As condições diferenciadoras não estão presentes na ordem física, material, tipo a cor da pele, embora este fator cumpra papel de pressuposto para o regime prático do preconceito e do racismo estrutural.

 A palavra “Consciência” é indicativa do núcleo do problema relacional, que foi construído para sustentar o regime econômico-político-sociocultural que produziu as diferenciações: o colonialismo escravagista que possibilitou enriquecimento ilício (hoje, criminoso) das potências europeias por quase meio milênio da história recente.

 Tão longo domínio só foi possível sustentar com o uso de estratégias que promoveram a captura da mente das pessoas: formação educacional, religiosa e pseudocientífica. A exploração da riqueza roubada do território de um povo só é possível fazer sem guerra sangrenta mediante o uso da manipulação, que é a técnica de exercício de poder social menos custosa. Também, a mais eficaz quando uma minoria tem o controle dos meios de comunicação social (jornal, rádio, tv, cinema, redes digitais, etc) para ‘fazer a cabeça’ da maioria ignara. As outras duas modalidades de exercício do poder, a força bruta e a persuasão, têm suas limitações, custos e riscos – fatores que a mente dos donos do capitalismo abomina.

 De 1948 a 1970, na África do Sul, o colonialismo havia atingido o ápice, construindo a mais dura e perversa estrutura de dominação do europeu sobre o povo africano para exploração humana e geográfica: o regime de segregação racial chamado Apartheid.

 Naquele ambiente - em que a cidade de Joanesburgo estava, material, jurídica, econômica, política e culturalmente dividida – surgiram naturalmente necessidades e oportunidades de o povo oprimido/excluído se reunir para discutir os problemas que resultavam de cada uma e das diversas camadas de exclusão.

 No conjunto das lideranças concentrado no bairro Soweto - professores, intelectuais, jornalistas, estudantes e trabalhadores – destacou-se um jovem: Bantu Steve Biko.

Biko, formado no ambiente cultural europeu- concentra a energia transformadora do verdadeiro político e a agudeza intelectual do filósofo. Da sua entrega apaixonada ao estudo e à reflexão sobre realidade desigual e humilhante que seus iguais experimentavam, nasceram as ideias que identificaram com clareza o nó do problema e, pelo debate nos coletivos do bairro – construída a estratégia para a superação do Apartheid.

 Tendo como ponto de partida a ideia de que “consciência é a capacidade de perceber a realidade, sentir e ter conhecimento de si mesmo (subjetividade) e do ambiente ao redor (objetividade)", bem como das relações, intersubjetivas, que estão estruturadas para delimitar a liberdade do pensar e do agir, Biko percebeu que no ambiente Apartheid haviam três tipos de consciências, todas elas criadas por uma só: a dos europeus, que era marcada por ideias, preconceitos e conveniências que definiam sua autoestima, baseada no sentimento de supremacismo racial. Transmitida aos não europeus, essa ideologia dará origem a duas outras consciências: “não brancos” e “negros”.

  A Definição da “Consciência Negra" foi feita por Bantu Steve Biko, em dezembro de 1971 – quando espocou a barreira que impedia aos negros falar ou escrever sobre o regime do Apartheid, ele imprimiu e distribuiu por toda África do Sul o manifesto intitulado “Escrevo o que eu quero”.  Foi covardemente torturado e assassinado ainda jovem, mas até hoje está vivo gritando aos nossos ouvidos, iluminando nossas consciências.

 Com a palavra, hoje, em todo o mundo, Bantu Steve Biko:

 A definição da Consciência Negra

Em nosso manifesto político definimos os negros como aqueles que, por lei ou tradição, são discriminados política, econômica e socialmente como um grupo na sociedade sul-africana e que se identificam como uma unidade na luta pela realização de suas aspirações. Tal definição manifesta para nós alguns pontos:

1- Ser negro não é uma questão de pigmentação, mas o reflexo de uma atitude mental;

2- Pela mera descrição de si mesmo como negro, já se começa a trilhar o caminho rumo à emancipação, já se esta comprometido com a luta contra todas as forças que procuram usar a negritude como um rótulo que determina subserviência.

A partir dessas observações, portanto, vemos que a expressão negro não é necessariamente abrangente, ou seja, o fato de sermos todos não brancos não significa necessariamente que todos somos negros. Existem pessoas não brancas e continuarão a existir ainda por muito tempo. Se alguém aspira ser branco, mas sua pigmentação o impede, então esse alguém é um não branco. Qualquer pessoa que chame um homem branco de “Senhor”, tratamento que os brancos exigem dos negros; Qualquer um que sirva na força policial ou nas Forças de Segurança é, ipso facto, um não branco. Os negros – os negros verdadeiros –são os que conseguem manter a cabeça erguida em desafio, em vez de entregar voluntariamente sua alma ao branco. Assim, numa breve definição, a Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão perpétua. O Negro procura provar que é mentira considerar a negritude uma aberração do “normal”, que é ser branco.  No mais elevado plano espiritual, é a manifestação de uma nova percepção de que, ao procurar fugir de si mesmos e imitar o branco, os não brancos estão insultando a inteligência da Fonte que os engendrou negros.

Portanto, a Consciência Negra toma conhecimento de que o Plano Cósmico deliberadamente criou o negro, negro. A finalidade é infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, religião e maneira de ver a vida.

 A inter-relação entre a consciência do ser e o programa de emancipação é de importância primordial. Os negros não mais procuram reformar o sistema, porque isso implica aceitar os pontos principais sobre os quais o sistema foi construído. Os negros se acham mobilizados para transformar o sistema inteiro e fazer dele o que quiserem.

Um empreendimento dessa importância só pode ser realizado numa atmosfera em que as pessoas estejam convencidas da verdade inerente à sua condição.   Portanto, a libertação tem importância básica no conceito de Consciência Negra, pois não podemos ter consciência do que somos e ao mesmo tempo permanecermos em cativeiro.

 Queremos atingir o ser almejado, um ser livre!

 

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