A Lava jato, a sentença condenatória e o eterno retorno.
Por José Berlange Andrade
A lava-jato constitui um regresso de eras que interrompe e põe em crise
o esforço científico-tecnológico e, também, o avanço prático-jurisprudencial
que assinala o aperfeiçoamento do direito penal. O que se testemunha no Brasil, é o rompimento
de um dos pilares da Civilização Ocidental: o conjunto da força-tarefa está
renunciando ao monopólio que garante a legitimidade e a especialidade do Poder
Judiciário de conhecer e julgar fatos históricos tipificados como crime, na
medida em que esta nova prática refunda a institucionalização da ‘última
palavra’ para adjudicação dos conflitos sociais, transferindo-a à
imprensa familiar-corporativa-partidária.
Do ponto de vista das chamadas fórmulas procedimentais para construção
do pronunciamento da verdade, a lava-jato está inovando: o juiz está
orientando-se por um critério misto: atua
sob o critério da livre convicção conectado
com a prática inquisitorial que
acumula funções ambíguas especializadas para obter resultados mediante a busca
da confissão, combinada com oferta de premiação e exercício de tortura.
Lava jato, com vazamento seletivo de provas e ampla transparência com
exibição ao vivo dos depoimentos testemunhais, levou ao grau máximo a publicidade.
Não porque buscasse a transparência, pois a seletividade indica que o objetivo
era o de influir na formação da opinião pública e, também, de fortalecer a
atuação da força-tarefa na medida em que reduz a capacidade de ação política
e jurídica e, também, de resistência social e moral dos investigados,
demonizando a imagem do réu e controlando o estímulo de ódio/indiferença à
pessoa, ao político ou ao empresário, bem como usando timing de orientação emocional para estimular/desestimular tomadas de decisões institucionais ou
esconder/intensificar fatos politicamente interessante à cooptação da massa
para ser usada como grupo de pressão na rua.
No uso do modelo misto, a função inquisitória da tortura impõe castigo e
humilhação pública e, estando o suspeito com a dignidade humana reduzida pela
dor moral e pela opressão da cadeia, o coletivo persecutório da força-tarefa oferece
ao inquirido um prêmio, um alívio, em troca de uma boa delação. A delação só é
boa - e aceita - se contribuir para a confirmação
ou esclarecimento dos fatos criminosos que foram imputados na acusação em desfavor do acusado.
Na prática, restaurou-se a tortura
que havia sido abolida quando a ciência penal transformou o objeto do processo,
que era a obtenção formal da ‘verdade judiciária’, em construção da ‘verdade
substancial’ ou material.
Naquela fórmula do processo inquisitivo medieval, era necessário que surgisse
uma notícia de crime. O simples e fraco indício (no sentido de suspeita) era
suficiente para deflagrar o procedimento formal da tortura que objetivava extrair da boca do suspeito: a confissão!
No processo inquisitório, a lei processual penal dava ao juiz poderes de
construir o caminho procedimental que julgasse adequado a cada situação, porque
o valor das provas já estava previa
e genericamente fixado pela lei.
O ambiente da vida social era marcado pela superstição, a ignorância, o
medo e o despotismo. Delegado da autocracia real, o juiz era extremamente
fortalecido pela lei e isto lhe dava poder e confiança ilimitada: reunia em
suas mãos as duas funções de acusador
e julgador; por isto, dizia-se, que
parecia mais escravizado, oprimido, pela expectativa que sua função criava no
imaginário do senso comum, do que verdadeiramente senhor da matéria, livre para
perseguir a verdade com que devia construir a sua sentença.
Tendo o réu confessado o crime, o juiz dava por esgotada a sua atividade
cognitiva e sentenciava, aplicando a condenação. Nesta fórmula, a condenação
era o fim último do processo penal. Por esta razão, a confissão era a rainha da prova e a tortura o método de excelência. E isso era um avanço em comparação
com a fórmula dos desafios das ordálias que o Ocidente herdou da antiguidade;
bem como um salto, em cotejo com o apedrejamento que a antiguidade autorizava
aos homens de bem executar nas vias públicas, bastando uma delação feita por
duas testemunhas.
Com a hegemonia do pensamento iluminista, a sociedade rechaçou o
processo inquisitório, principalmente pelos danos que a autoridade do Estado
causava às pessoas comuns e a seus familiares:
era uma luta aberta e desigual entre inquirente e inquirido.
Cesare Beccaria, em 1764, publicou apocrifamente sua obra Dei delitti e dele
pene que, imediatamente, passou a influenciar reformas legislativas em toda a
Europa. A abolição da tortura trouxe profundos avanços ao tratamento do crime e
do criminoso. Na esfera processual penal consagrou-se a busca da verdade
material, introduzindo o método lógico-jurídico como instrumento para
investigação do crime e da autoria. As regras probatórias orientam até hoje a
ordenação e valoração das provas no processo penal da família Ocidental.
Mirando a esfera desse suporte de garantia tecnológica (obediência às
regras probatórias como limite à livre convicção do juiz) que a sentença condenatória
do juiz Sergio Moro apresenta o maior grau de deficiência técnico-científica. O
conteúdo da narrativa e o sentido da argumentação é resultado do esforço,
inconsciente talvez, de distanciar-se da busca da verdade, quando parece favorecer
a absolvição, e de expor exageradamente os elementos de prova que fortaleçam uma
justificativa de condenação. Isto é desastroso para a sociedade, demolidor para
a Democracia, e injusto para com a pessoa do ex-presidente Lula.
Vejamos bem. O que inspirou e influenciou Beccaria e outros pensadores
de sua época, na fixação do ponto de partida do sistema penal que propuseram,
foi a ideia de Justiça que encontraram no estudo do mito Maat: deusa egípcia da
harmonia e do equilíbrio do Universo que representa, na vida social, a Justiça
e a Verdade. Aí, a lógica é simples e booleana: a Justiça é a outa face da
Verdade. A verdade só pode ser alcançada como síntese de uma dialética que opõe
acusação e defesa, não apenas na mesa, mas na igualdade de acessos, de exibição
de provas, de narrativa dos fatos e de ação para o equilíbrio do processo.
A sentença condenatória do juiz Sergio Moro colidiu com esses
fundamentos de Igualde, Verdade e Justiça.
Isto só contribui para acirrar o desequilibro, a desarmonia que foi
implantada no Brasil por irresponsabilidade da mídia familiar e corporativa,
quando escolheu manipular a ignorância, a superstição e o medo da maioria da
população brasileira, usando o ódio das massas para implementar um projeto
antipopular que dependia, para sua legitimação, do voto popular. E o País inteiro está agora à deriva e, pior,
como um grande sólido flutuante.
No próximo texto, demonstrarei como uma análise das provas esses
déficits tecnológicos apontados no trabalho em que o juiz Sergio Moro condenou o ex presidente Lula com 'nine' anos de prisão.
Contorcionismo argumentativo para defender ladrões..
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