Prova e Verdade, Convicção e Convencimento.



por José Berlange Andrade

A exemplo do que tem ocorrido em todo mundo capitalista, acirra-se aqui o embate político para a hegemonização de políticas econômicas que assegurem o domínio e a exploração classista. É guerra fria e midiática que cuida primeiro de matar a verdade, enquanto lança mentiras à moda de arma química de duplo efeito perverso: a propaganda para demonização do adversário e a manipulação para atiçar o ódio das vítimas contra seus verdadeiros aliados.
 No controle dos movimentos da guerra, o lado mais forte vai transformando sua agenda em resultados políticos e econômicos, perversidade que impõem aos trabalhadores assalariados o ônus de pagar a conta dos prejuízos causados por decisões irresponsáveis dos financistas e rentistas que atuaram criminosamente, até explodir a crise de 2008 que continua destruindo a economia e precarizando as relações de trabalho.
No Brasil, o setor de informação e publicidade ampliou, unificou e universalizou seu poder de manipulação das massas, quando uma diversidade de forças econômicas, financeiras, políticas e morais, contrariada dentro e fora do País, reuniu forças nos mercados, nas instituições públicas e na sociedade civil organizada para difundir o discurso e o fake new para arrancar o PT da governança e para retirar suas lideranças das disputas eleitorais.
É assim que esse ambicioso projeto – de construir um discurso único, para implantar uma única política econômica, para ser gerenciada por uma pseudodemocracia de partido único – consegue escamotear a ditadura liberal que está sendo apressadamente implementada no Brasil.
Este neoliberalismo internacionalista, que usa métodos leninista-marxistas, coordena as forças subalternas locais – provavelmente, desde núcleos global-colonialistas que se apropriam de nossa remuneração por meio de juros e que, insatisfeitos, pretendem o domínio das nossas riquezas estratégicas naturais – para açabarcar não apenas à massa do senso comum, mas também a vários setores da elite técnica, que são cooptados por formadores de opinião e enganados por Fake News que invadem a ingenuidade de uns e a ignorância de outros.
Claríssimas são as circunstâncias que indicam o seguinte. Todos os movimentos políticos e sociais ocorridos nos últimos 4 anos, estimulados pelas manchetes e pelos alardes pirotécnicos da mídia unificada e coordenada, foram promovidos para impor o domínio dos mercados sobre os trabalhadores e para assegurar a hegemonia da vontade dos ricos sobre o destino da classe média, abandonando os pobres à própria sorte.  Os pobres tendem a perceber primeiro os riscos dessa guerra. A classe média demorará um pouco mais para cair na real, porque, no Brasil o preconceito e a ignorância que a envolve favorecem a vida de hipocrisia e de falsa moralidade que cultiva.
Por outro lado, esses mesmos fatores acima, aliados à formação autoritária, geram uma forte crença na eficácia do uso da violência organizada (estado policial) como método capaz de pôr fim aos conflitos sociais, políticos, econômicos e culturais que resultam da exploração, da pobreza e da miséria. Acredita-se, ingênua e demasiadamente, na política e na religião como meios eficazes para exterminar os problemas e os males, sociais e individuais, que as desigualdades econômicas e socioculturais causam no ambiente mundano.
São essas práticas e crenças que estão na origem e na direção de todo os desmandos, de todas as incertezas, de todas as maluquices e de todo caos que o senso crítico testemunha nesta quadra, com enorme perplexidade.
A lava jato, a denúncia do MPF, sob a liderança de Deltan Dallagnol, aparece no centro do palco, sob o holofote que expõe as vísceras das crises brasileiras: moral, jurídica, política, econômica e sociocultural. Da janela do mundo aberta, como a brincar de deus, todos estamos vendo tudo, conforme os princípios da transparência e da sociabilidade, que garantem a faculdade do exercício da fiscalização para o controle social do comportamento dos agentes que juraram cumprir a constituição e as leis, em favor do bem-comum em geral e da segurança jurídica de cada um e de todos nós, em cada caso particular. 
A sentença da Lava jato constituiu um trabalho técnico cujo desenvolvimento, conteúdo pessoal e emotivo, e conclusão confusa desapontou a amplo espaço da esfera científico-jurídica que a conheceu. O pronunciamento final, interpretado como ato político por amplo consenso social, desagradou a uns e revoltou a outros.
A percepção dessas frustrações que continuam a se expandir, como consequência da quebra de expectativas técnicas e morais, explica a avalanche de críticas que está sendo publicada todos os dias na imprensa e nas redes sociais, do Brasil e do mundo.  
A defesa de princípios constitucionais que informam o processo penal e a cobrança por um compromisso sério com a busca da verdade material, para a formação do convencimento em matéria criminal, parece indicar que retrocedemos um século na máquina do tempo. Isto traz à oportunidade algumas atualidades da lógica jurídica ensinada pelo advogado italiano Nicola Framarino dei Malatesta, autor do livro A Lógica Jurídica das Provas em Matéria Criminal. (Livro PDF:).
Para o entendimento teórico dos fatos e do debate que está acontecendo neste momento, e que têm trazido tantas perplexidades e inseguranças às pessoas de todos os níveis sociais e culturais, propomos seguir as luzes nos passos daquele grande Mestre italiano.
A prova é o meio objetivo pelo qual o conhecimento se aproxima da verdade. A prova tem em si duas propriedades verificáveis, o valor e a eficácia.  A verdade é relação de correspondência entre a representação mental (ideológica) e a realidade ontológica. A eficácia da prova será tanto maior, quanto mais clara, ampla e firmemente o objeto produzir na mente a crença de estarmos seguro da verdade.
Para se conhecer a eficácia da prova, é necessário conhecer o grau de modificação que a atividade cognitiva acrescentou à nossa consciência, relativamente à coisa investigada.  Por conseguinte, para se obter o valor prova, é necessário conhecer os efeitos que ela pode produzir na consciência, ou seja, os estados de conhecimento que a ação da prova produziu na representação mental do objeto investigado. Relativamente ao conhecimento de um determinado fato material, o espírito humano pode achar-se em estado de ignorância, de dúvida ou de certeza.
Certeza ou simples convicção é a crença (no sentido de fé) de se estar na posse da verdade. É um estado mental não crítico, não submetido a processos comprobatórios objetivos dentro de marcos técnico-científicos.
O convencimento – estado intelectivo necessário para formar juízo de condenação em matéria criminal - é o ponto de legitimação que a reflexão alcança quando converte, pela análise racional da prova, a convicção intuitiva (simples certeza) em certeza refletida face a verdade real. 
Não há fato humano sem materialidade que o exteriorize. Tudo que o homem faz na vida deixa rastros e vestígios. Esses sinais são os efeitos físicos da ação criminosa, os rastros a partir dos quais é possível afirmar a existência histórica do fato delituoso e da autoria.  A materialidade só pode ser percebida por meio dos sentidos ou de instrumentos tecnológicos que os auxiliem. O convencimento só pode ser construído por meio do raciocínio, instrumentalizado pela reflexão. 
Reflexão - À percepção da realidade física por obra dos sentidos vem juntar-se o concurso ativo da inteligência para conduzir a mente, da realidade física percebida direta e materialmente, à afirmação de uma outra realidade física ou moral não percebida direta e materialmente.
É tão pobre o campo das nossas verificações pessoais que, limitado à percepção intuitiva, seríamos envolvidos pelo desconhecido: é o raciocínio que, alargando criticamente os limites da janela, enriquece a visão intelectual com horizontes indeterminados.
A reflexão, por isso, é a primeira e mais importante fonte do convencimento em matéria criminal. Um fato físico (arqueológico) conduz a mente ao conhecimento de outro fato físico ou moral que atuou como fonte do vestígio; e o fato que a conduz ao conhecimento de outro fato não percebido diretamente, constitui o objeto da sua prova.
O objeto da prova pode ser uma coisa ou uma pessoa, daí os dois tipos de provas: material (coisas, documentos, sinais virtuais, etc) e pessoal (confissão e testemunho, sendo a perícia um testemunho técnico).
O ato crítico-reflexivo que constrói o convencimento (que torna perfeita a simples convicção) não deve ser determinado por razões estranhas à busca da verdade que se deve fazer pelo exame das provas. Para que esta verdade, que é a suprema meta do espírito, conserve a sua natureza genuína e racional, isto é, a verdade que não se contenta com a simples convicção indiciária (que não é mais que uma crença na posse da verdade), porque necessita da construção crítico-racional do convencimento que qualificará e legitimará aquela fé superficial.
Portanto, em matéria criminal, o convencimento deve ser natural no juiz, isto é, tal como surge da ação genuína das provas sobre os seus sentidos, e que, apreciadas livremente, darão segurança ao conhecimento dos fatos analisados.
Já o convencimento artificial – a convicção produzida por razões estranhas à natural influência das provas exibidas ao juiz – só trará desgraças da Justiça.
O convencimento artificial é um erro lógico que resulta num erro jurídico, pois quase sempre desemboca numa condenação que sacrifica a um inocente, ou na impunidade que deixa livre um culpado.
E este erro jurídico, nas relações sociais, converte-se em um erro político, devido à perturbação que desencadeia na consciência social, constituída espectadora da condenação fatal do inocente e da absolvição fatal do delinquente.
A ausência de prova da materialidade ou da autoria, gera probabilidade de inocência. A abundância de provas, ao contrário, gera certeza de delinquência. Basta que se repercuta na consciência social o eco de uma única condenação, reconhecida injusta e infligida ao inocente; basta que se repercuta o eco de uma única absolvição, reconhecida injusta e concedida ao delinquente.
Basta um erro desses para que toda a fé na justiça humana se desvaneça e, por aí, se alastre na consciência do povo um sentimento de receio, de desânimo e de incredulidade ao nome da justiça.
 Estas razões estranhas que perturbam a naturalidade do convencimento, podem ocorrer no exame indireto das provas: quando o juiz, descolado da alternativa do debate, vai formando sua convicção pessoal, não examinando e nem pesando as provas diretas por sua própria conta e liberdade, mas aderindo às apreciações feitas apenas por uma das partes, ou pior, assumindo como juridicamente controlada (conhecimento certo e seguro) a notícia publicada pelos jornais e replicada nas páginas da Internet.
Além disso, estas razões estranhas podem consistir no influxo do senso comum, quando o juiz inclui a aprovação ou o apoio da opinião pública como fator a ser atendido pelo resultado da sentença; neste caso, o erro consiste em atribuir-se ao comportamento social exógeno uma eficácia maior do que aquela extraída do exame objetivo das provas ou para suprir a ausência endógena de provas.  O fator exógeno terá por conteúdo motivações estranhas à esfera jurídica, consistindo, geralmente, em razões de fundo econômico-financeiro, político-partidário ou moral-religioso.
Neste erro, o juiz deduz o valor do convencimento de fatores estranhos e não da prova diretamente examinada, mas da necessidade de buscar reforço no populismo e não na própria consciência, pela livre apreciação da prova.

Finalmente, estas razões estranhas à verdade podem surgir também da própria mente do magistrado: de uma disposição particular que atua abaixo da consciência para influenciar na determinação do convencimento.
Esta influência interna pode ser até mais perigosa que os influxos externos para detonar a busca da verdade. É claro que as manifestações emocionais e preconceituosas da nossa mente podem influir sobre a formação do convencimento, conduzindo o raciocínio ao erro. Porquanto é certo: a simples circunstância de a pessoa ter conhecimento, em primeiro lugar, da notícia de um fato que lhe era ignorado, faz nascer na consciência um sentimento prévio de convicção e não de dúvida. Mesmo para o juiz, que atualiza o conhecimento diariamente pela mídia, esta circunstância natural atua assim; e se não houver uma atitude crítica no conhecimento processual, aquela simples convicção tenderá a determinar a atenção do pensamento mais a uma consideração da narrativa que confirma a convicção do que a outra que a nega.  Isto terá peso significativo na formação da vontade decisória.
Afinal, ao excluir sem exame um argumento contrário, é a convicção natural que vai firmar positivamente o convencimento sobre um argumento feito no sentido daquela convicção; principalmente, se a vontade do juiz estiver exposta aos ventos das suas paixões ou vaidades.
A força do nosso temperamento, a força dos nossos hábitos, das nossas inclinações e das nossas prevenções, pode facilmente arrastar-nos a juízos falsos. É preciso por isso que a nossa vontade não perturbe com a sua influência a liberdade e a serenidade das visões intelectuais; e esta liberdade e serenidade da inteligência não serão salvas, se o ânimo que se dispõe a julgar, não se prepara para isso com a expurgação de que falara Platão no Fédon, e que o grande filósofo julgava necessária para chegar à verdade: é necessário expurgar o espírito das paixões.
Por este motivo, o direito constitucional proclama o princípio da presunção de inocência como necessário para estabelecimento do equilíbrio e da igualdade entre as partes: o juiz deve dedicar igual e proporcional esforço na apreciação da narrativa e da prova exibida pela acusação e defesa, obrigado que está de raciocinar sobre elas libertado de influencias estranhas, objetivas e subjetivas.
Natural e livre, o convencimento judicial deve ser, principalmente, raciocinado. Esta segurança não pode vir de impulsos cegos e instintivos do ânimo; mas sim daquilo determinado pela visão distinta e pela apreciação das razões apresentadas pelas partes, portanto, nem cego, nem simplesmente racional, mas refletido no sentido de sopesar alternativamente as procedências.  
Mas dizer que o convencimento deve ser raciocinado, não determina qual os fatores que devem legitimar o convencimento; e muitas vezes as interferências de prevenções subjetivas do juiz dão excessivo peso a motivos fúteis, e até a pretextos, que a pessoa é levada a considerar como razões suficientes.
Ora, é importante para construção do convencimento judicial, que as razões que o determinam devam ser expostas com objetividade e simplicidade, de maneira a criarem convicção em qualquer outra pessoa racional a que sejam expostas. Em outras palavras, o convencimento não deve ser fundado em apreciações subjetivas do juiz; deve ter tal objetividade, que os factos e as provas submetidas à sua cognição, se fossem submetidas à apreciação desinteressada de qualquer outra pessoa racional, deveriam produzir também nesta o mesmo convencimento que produziram na consciência do juiz.
Este requisito procedimental, importantíssimo, é o que Malatesta chama de princípio da sociabilidade do convencimento.
O convencimento livre e natural, como caminho racional para a legitimação da certeza construída no juízo penal, está relacionado com a afirmação do fato delituoso e da sua autoria: é o fato criminoso que não pode ser afirmado enquanto não seja tecnicamente bem verificado.
Neste ponto é necessário não esquecer que é em nome da consciência social que se exerce a justiça punitiva; é nesta consciência social que está a legitimação do direito de punir: pune-se o culpado para destruir a perturbação social que o delito produz; e absolve-se o inocente pela mesma razão: evitar a perturbação social que o erro jurídico produz.
Por tudo isto, compreende-se que a certeza moral do juiz, para ser fundamento legítimo de condenação, deve encontrar apoio na consciência social. A contradição entre a consciência social e a do juiz, deve levar sempre à absolvição, e nunca pode levar à condenação.
Se o juiz, embora quando se sinta pessoalmente convencido da criminalidade do imputado, achar que as suas razões não são tais que possam criar uma igual convicção em qualquer outro cidadão racional e desinteressado, deverá absolver.
Segue-se daí que o juiz nunca deverá fundamentar as suas persuasões naquilo que conhece como homem particular. Quanto à sua consciência, nada há mais certo que aquilo que ele percebeu diretamente; mas não se dá o mesmo relativamente à consciência social.
Se o juiz tem particularmente conhecimento do fato criminoso, ou de fatos comprovativos da inocência, deve declinar do ofício de juiz, entregar o processo a outro e apresentar-se como testemunha: o seu testemunho será avaliado e pesado não só pelo magistrado que julgar, mas pelo segmentos técnicos e leigos da sociedade interessada.
Este princípio da sociabilidade do convencimento judicial, exposto pioneiramente por Malatesta, é da maior imporncia. Esta sociabilidade encontra a sua origem unificadora na razão humana, na qual se inclui a harmonia espiritual e a adesão colaborativa do agir humano.
Esta sociabilidade é uma espécie de objetivação da certeza e nela está a melhor determinação do convencimento judicial; determinação que impede que a verdade se resolva, mais ou menos hipocritamente, por um arbítrio do juiz.
Mas, para que este princípio da sociabilidade da convicção não seja uma estéril aspiração principiológica, é preciso que tenha uma concretização exterior e judicial. E esta concretização entra no rol daquelas condições que tornam possível a apreciação da sociedade sobre aquela mesma matéria que é objeto da cognição do magistrado.
No controle social está a garantia concreta e prática da sociabilidade: a fiscalização que a própria sociedade pode exercer sobre o trabalho do magistrado, reprovando-o quando disforme, ou aprovando-o quando conforme as regras do jogo.
Hoje a sociedade pode exercer a sua fiscalização acompanhando praticamente ao vivo o desenvolvimento do processo e o conteúdo dos pronunciamentos e das provas exibidas pelas partes e as respectivas decisões do juiz.
Concluindo. Os princípios judiciais da publicidade e da obrigatoriedade dos fundamentos da sentença são duas consequências do princípio da sociabilidade do convencimento judicial. Graças ao aperfeiçoamento das tecnologias de computação e de telecomunicação, este princípio assumiu máxima importância para o aperfeiçoamento democrático das relações entre a sociedade civil e as instituições jurisdicionais e governamentais.
Cada vez mais nos aproximamos mais do ideal preconizado por Beccaria e Malatesta, no sentido de estabelecer marcos limitadores aos abusos e aos arbítrios que sempre representam risco aos benefícios edificantes que estão na expectativa do exercício do livre convencimento do juiz: um processo penal pelo qual a justiça primitiva evolua para atingir sua função verdadeiramente social.
A sociedade, exausta, exige verdade e a justiça. Interessa ao povo brasileiro um sistema judiciário que impeça, na prática, o arbítrio pessoal, hipocritamente disfarçado, para favorecer a manipulação da sociedade - em sintonia com mercados e em conluio com a mídia e agentes da governança.
Quando o exército ou a justiça são postos a serviço da disputa político-partidária isto pode significar que a sociedade deva preparar-se para o pior, porque o povo logo mais estará pegando em armas para derramar sangue numa guerra civil.


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