A Nota dos comandantes e o dilema do jogo (que continua)

 

Projeto Bolsonaro” é finito, mas é preciso ficar atento aos militares.  Entrevista especial com Piero Leirner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU


A primeira manifestação do Ministério da Defesa foi a última a ser publicada dentre as demais instituições que fiscalizaram ou auditaram as eleições. A demora foi causada por interferência do Comandante Supremo, o presidente da República. Ele queria um Relatório que tranquilizasse aos outros Poderes (Legislativo e Judiciário), mas, ao mesmo tempo, mantivesse acesa a chama que alimenta o inconformismo e o medo que impulsionam a mobilização da massa manipulada.

O primeiro objetivo foi alcançado junto aos destinatários racionais. Presidentes da Câmara e do Senado reagiram com satisfação. O TSE respondeu com satisfação, numa Nota Oficial, destacando que o Relatório da Defesa assegurou não ter detectado fraudes no uso das urnas e nem no processo eleitoral.

O universo paralelo, como previsto, parece ter enxergado no Relatório do Min. da Defesa apenas o parágrafo que dizia não estar descartada a possibilidade de existência de outros crimes eleitorais, que poderiam ter sido cometidos por meio de práticas não compreendidas na lista de tarefas que focou apenas o funcionamento das urnas eletrônicas. Ao lado disto apareceram, então, vídeos encomendados com narrativas para plantar dúvida nos algoritmos ou nos trabalhos das seções de votação.

As forças golpistas consideraram pífia a mensagem. Pressionaram e o Ministério da Defesa reagiu publicando uma nota oficial, relativizando a satisfação contida na nota do TSE e reforçando a informação que interessava à manutenção da mobilização defronte aos quartéis: alegou que o acesso ao código-fonte foi restringido; afirmou que "houve possível risco à segurança na geração dos programas das urnas" e que "não é possível assegurar que os programas que foram executados nas urnas eletrônicas estão livres de inserções maliciosas que alterem o seu funcionamento".

A nota, claramente, evidencia que o Ministério da Defesa estava usando o prestígio das forças armadas para reforçar o ânimo golpista dos fanáticos que estão se concentrando às portas dos quartéis pedindo intervenção militar (“federal”). Fato que levou as instituições e o presidente eleito a reagir com forte crítica e advertências.

No dia 11/11, ao alvorecer, os comandantes de Marinha, Exército e Aeronáutica publicaram Nota Oficial se posicionando sobre os conflitos políticos, focando não apenas os atos emocionais que pedem golpe militar em resposta ao resultado eleitoral, mas, também, a atuação decisória de agentes públicos que reagem com a aparência de estar cometendo censura às liberdades individuais.

Esse posicionamento dos comandantes das tropas, em primeiro lugar, deve ser visto como um gesto que comunica, indubitavelmente, desatrelamento com a posição tendenciosa na Nota do Ministério da Defesa, publicada no dia anterior por interferência de Bolsonaro.

Esta circunstância é reforçada pela opção da Nota de fixar aparente equidistância diante da situação que definem como controvérsia, na medida em que o trio aponta eventuais excessos nos dois polos que julga estar em relação neste jogo, sobre o qual os comandantes se posicionam:

"São condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade"

 

 É preciso penetrar um pouco nessa floresta de palavreado.

A referência a ‘eventuais restrições a direitos por parte de agentes públicos’ aponta para o min. Alexandre de Moraes. A nota assume uma percepção parcial que abunda nas páginas da web: “uma grande parcela da população está insatisfeita com o Judiciário e com a maneira como se deu o processo eleitoral”. Estamos aqui diante de suposto prejuízo alegado por inconformados, numa reação ao fato de o presidente do TSE ter determinado a retirada de perfis bolsonaristas da Internet ou determinado a prisão de outros inconformados, que “estariam, simplesmente, exercendo o direito de liberdade de expressão”.

Quanto a eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública, a nota está apontando para os inconformados que estão reunidos em frente a quartéis em protesto contra a vitória de Lula, pedindo desesperadamente a intervenção das Forças Armadas para ‘reverter’ o resultado eleitoral.

Respondendo às expectativas dos grupos mobilizados que reivindicam a intervenção das Forças Armadas para reverter a vitória de Lula, já proclamada pelo presidente do TSE, os três comandantes são firmes e contundentes, não deixando margem para ilusão ou manipulação:

"A solução a possíveis controvérsias no seio da sociedade deve valer-se dos instrumentos legais do estado democrático de direito."

Para que não haja dúvida, os três comandantes estão afirmando aí que qualquer tipo de controvérsia deve ser solucionado dentro do Estado Democrático de Direito! Portanto, não existe a possibilidade de um golpe militar para anular as eleições.

Os instrumentos constitucionais e legais que definem as consequências da proclamação do resultado de uma eleição já estão em funcionamento: a equipe do governo atual está colaborando com a equipe do futuro governante, cumprindo as regras de transição para a nova gestão do Estado. Passo seguinte, será a diplomação dos eleitos abrindo caminho para a posse e o exercício nos cargos conquistados nas urnas.

Na hipótese de recurso para instaurar controvérsias, o candidato inconformado (seu partido e o MP) têm legitimidade para propor o devido processo legal. Este modelo de disputa é a maior conquista da civilização. Quedar inconformado é o comportamento ético-moral que se espera do perdedor. Levantar-se desse inconformismo é um direito que só pode ser exercido mediante a comprovação de fraude eleitoral. Atenção para o tamanho da fraude que interessa: não é qualquer merreca de irregularidade; deve ser treta das grandes, ou seja, uma proporção grande de crimes que comprometa a lisura, quantitativa e qualitativamente, ao ponto de a anulação de tais votos tornar irrelevante a diferença de votos que garantiu a vitória.

Em síntese. Ao reconhecer que cabe ao TSE exercer o poder de resolver os problemas de inconformismo nascido da derrota eleitoral, os três comandantes colocam o poder de pressão dos grupos mobilizados pelo Zap na categoria dos atos ineficazes, isto é, inúteis. Ora, pessoas no exercício normal da razão e orientadas pelo bom-senso não se juntam para gastar energias (física, psíquica, emocional e moral) inutilmente. Aos olhos dos demais, isto pareceria insano, estultice das maiores.

A mesma esfera de resolução de problemas está reservada para as controvérsias que a nota militar identifica: as “ações de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade". Sim, porque o Poder Legislativo já criou os tipos penais para responder com sanção a esses tipos de lesão à ordem democrática: conferir os artigos 359-M e 359-L do Código Penal.

De consequência, essas ações tipificadas serão conhecidas e julgadas pelo Judiciário. A outra parte da sociedade que pretende conviver em ambiente de paz e de desenvolvimento social, está exigindo que a Justiça trate os ataques à Democracia com todo o rigor, sem tergiversação na aplicação da lei – doa a quem dor. Esta é a única fórmula de lidar com as maluquices que estamos testemunhando com enorme perplexidade.

Esta posição das Forças Armadas face ao povo brasileiro (“compromisso irrestrito e inabalável com a democracia e com a harmonia política e social do Brasil”), parece assinalar um fim de linha para o movimento golpista construído nas ruas para 'legitimar' um golpe de estado.

 

Mas, como neste mundo nada morre, o projeto de golpe poderia já se apresentar em movimento de transformação, no sentido da continuidade noutra esfera de poder, mais racional e controlável. Não por iniciativa ou intenção dos comandantes que assinam a nota, porque expressivos os sinais do esforço de se manter as Forças Armadas circunscritas à sua missão constitucional e profissional.

Pelo mesmo motivo, é perceptível o esforço do Planalto em manter a massa mobilizada e energizada pelos fakes do zap. Porém, depois de publicada essa posição inequívoca dos comandantes militares, impossível o núcleo político do governo continuar apostando nos setores empresariais urbanos e do agronegócio que aceitaram cumprir o papel de fiadores do golpe contra as urnas. Os computadores do palácio passaram a ser dispensáveis e cuidou-se de deletar rastros de crimes.

O bolsonarismo raiz, que remanesce nas ruas, será transformado em grupo de pressão radical, útil para exercer pressão e ameaças aos membros do Congresso que têm os limites de suas liberdades reduzidas pelo medo.

Com efeito. É necessário agora penetrar um pouco mais na floresta da nota, para se ter ideia sobre qual instrumento legal do Estado Democrático de Direito parece estar recomendado pelos comandantes, para a solução da controvérsia entre ‘agentes públicos controladores’ e ‘parcela da população que manifestas ‘demandas legais e legítimas’.

Um agente público de fácil identificação é o min. Alexandre de Moraes cujas decisões - para o controle das ofensas que se pratica pelas redes sociais da web contra a liberdade de escolha dos eleitores -, ao olhar do redator da nota, atenta contra a liberdade de “manifestação crítica aos poderes constitucionais e à atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais", termos da Lei nº 14.197, de 1-9-21.

Evidentemente, uma leitura parcial porque omitiu-se de distinguir os propósitos das manifestações críticas. Ora, uma crítica pode ter propósitos positivos, construtivos, cooperativos, bons; mas, pode ter também fins antissociais, negativos, destrutivos, imorais ou ilegais.

Porque existem motivos universais que a sociedade brasileira repudia e condena, a mesma lei acima referida – denominada Lei de crimes contra o Estado democrático de Direito - acrescentou na Parte Especial do Código Penal um Capítulo nomeado de “Dos crimes contra o Estado democrático de Direito”. Tipificando as condutas que excedem a ideia de crítica positiva ou negativa e ultrapassam a linha da licitude, passando a constituir Crime Penal, alguns com pena pesadíssima.

Nesse capítulo da lei penal estão tipificados: crimes contra a soberania nacional, crimes contra as instituições democráticas, crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral, crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais. Lamentavelmente, o presidente da república vetou a tipificação do crime de “comunicação em massa enganosa” – ou seja, liberou o uso abusivo de fake news pela imprensa e pelas redes sociais da web.

E, todos sabemos, é esta a principal conduta que tem dado causa aos conflitos e controvérsias a que se reporta a nota dos comandantes militares. Possibilitando que a mentira desenfreada circule livremente na maioria dos lares, escolas, igrejas, locais de trabalho e de diversão, enfim, em todas as ruas e praças públicas brasileiras. O objetivo dessas mentiras é espalhar desinformação no seio da massa ignara e, com isto, aprisioná-la dentro de uma bolha virtual que funciona como realidade paralela, na medida em que a massa é convencida a se distanciar das notícias de jornais. Com a capacidade cognitiva reduzida por uma percepção que interage com sombras e fantasias, a cidadã e o cidadão têm – por consequência – reduzido o seu grau de liberdade. É este o propósito da ação intencional dos manipuladores que exploram a maior vulnerabilidade do senso comum: o medo. É assim que a liberdade de escolha, que se nutre de ampla informação e do amplo debate de ideias e propostas (função da propaganda eleitoral), sofre dano de monta: o eleitor é impedido de escolher a candidatura que melhor atenderia suas necessidades e interesses, vitais e sociais.  Sua atenção fica restrita a jargão moral e fofocas: ameaça comunista; nove dedos ladrão; PT organização criminosa, mamadeira de piroca, banheiro unisex, etc etc. 

Não obstante, a má vontade do mandatário máximo, o crime de golpe de Estado permaneceu no texto da lei. É a conduta tipificada no art. 359-M:

Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.”

Esse delito de golpe de Estado está dentro do conceito de Crimes contra as Instituições Democráticas. O valor ou bem jurídico que este tipo criminal protege – diante da possibilidade de ofensas praticadas por pessoas antidemocráticas – é o próprio Estado Democrático de Direito. Ou seja, o modelo social que está consagrado no preâmbulo da Constituição e no seu primeiro Artigo. Portanto, o golpe de estado é uma ofensiva à modelagem básica da plataforma institucional da República federativa brasileira.

  Não é pouca coisa.

Dessa breve leitura já se vê que a controvérsia, destacada na nota em análise, é apenas um aparente conflito. Porque não diz com a realidade dos fatos, tal como programados na norma. Diz com divergência de representação mental dos fatos, que devem ser interpretados pelo critério oferecido pela lei. O aparente conflito decorre de diferentes perspectivas que o intérprete toma para fazer a interpretação do texto da lei: o mesmo artigo 359 com sua diversidade de hipóteses filtrada, seletivamente, com o propósito de dar sentido mais ‘leve’ a atos incriminados pela ordem jurídica.

À leitura dos militares houve manifestação de ‘demandas legais e legítimas. Respeitável interpretação, no quadro de debates facultado pelo regime democrático do Estado de Direito. Porém, pela modelagem constitucional brasileira, o conhecimento de fatos apontados como criminosos, a escolha e a interpretação das leis aplicáveis às condutas e a decisão pela responsabilização quanto aos resultados danosos da ação, são atividades privativas e monopolizadas pelos juízes e Tribunais que constituem o Poder Judiciário.

A constituição assegura garantias protegidas por cláusulas pétreas: liberdade e independência para conhecer e julgar os fatos e aplicar razoavelmente a lei, segundo os ditames da consciência.

Ora, pelo número diminuto de pessoas que aderiram às manifestações, não obstante o oferecimento de benesses, como alimento, bebida, acomodação, etc., parece que a maioria do povo – incluído os inconformados – preferiu omitir-se de sair as ruas para bloquear estradas e ocupar os arredores dos quartéis para pedir intervenção militar. Intervenção para quê? Para impedir a diplomação e a posse de Lula no cargo para o qual foi eleito nas urnas.

Essa pretensão poderá ser legítima e legal, desde que exista um motivo justo para esse ‘impedimento’. Os ativistas alegam que o resultado das eleições foi determinado por fraudes. Primeiro, no uso das urnas eletrônicas. Depois de todos os Relatórios negando a existência de fraude ou inconsistência na votação eletrônica, só resta a possibilidade de se comprovar fraude do tipo material. O que só pode ser feito mediante recurso em que se exibam os fatos e as respectivas provas, robustas de verossimilhança, diga-se de passagem.

Então, estamos numa situação na qual a controvérsia se dá apenas na esfera da retórica, não dos fatos reais e concretos.

Isso é muito pouco. Porque o caráter de legalidade-moralidade-legitimidade da eleição é um requisito protegido por presunção legal. A ausência dessa característica no pleito deve ser comprovada; e mais: demonstrado o prejuízo. Preenchidos esses dois pressupostos, eventual  anulação tende a ser pontual e relativa à proporcionalidade do volume do prejuízo.

Ora, se as eleições estão na condição de legais e legítimas, parece evidente, que a tentativa de afastar, por meio de violência ou grave ameaça, o exercício de um governo legitimamente constituído, pode ser interpretada facilmente como crime de Golpe de Estado.

A importância dessa argumentação está na leitura do seguinte recorte no conteúdo da nota oficial dos três comandantes:

A solução a possíveis controvérsias no seio da sociedade deve valer-se dos instrumentos legais do estado democrático de direito. Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que "Dele" emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação.

Da mesma forma, reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade.”

Mais uma vez as palavras-chave sinalizando caminhos. No centro de tudo, como já se viu anteriormente, decisões e condutas a serem interpretadas ao critério da “legalidade e da legitimidade

E aqui tratamos de uma proposta de ‘solução das controvérsias’, mirando o polo das ‘autoridades da República’ instituídas pelo mérito constitucional (juízes e Tribunais), com o propósito de se buscar corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos’ que põem em risco um bem jurídico maior: a liberdade da População... Aí, então os polos da relação conflituosa, à percepção dos militares: O povo e sua liberdade versus os juízes e suas arbitrariedades!

E a quem competiria a função de árbitro da grave decisão? “Cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que "do povo" emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população”.

Estamos vendo falar aqui do Poder Legislativo, por suas casas legislativas e controladoras, Câmara e Senado. Principalmente, o Senado – a julgar pelas palavras do senador eleito pelo RS, gen. Mourão, propondo: aumentar o número de Ministros do STF e votar impeachment de ministros que chama de arbitrários.

A semelhança que vemos em termos da nota oficial com palavras-de-ordem gritadas nas concentrações de vivandeiras de quartéis que estão cometendo tentativa de golpe de estado, parece não ser mera coincidência. Resultou de orientações emanadas de uma mesma fonte de poder social, que lhe dá unicidade de palavra e de ação. Nas ruas, há inúmeros registros de atuação de lideranças que fazem orientação para a conduta, ensinando quanto ao uso das palavras-de-ordem, advertindo: “não falem em ‘intervenção militar’! Falem ‘intervenção federal’ para não configurar a ilegalidade da luta! Ora, isto revela manifesta tolice, porque: a ação criminosa é um tipo penal que contém elementos subjetivos e objetivos que concorrem para a definição da conduta conectados à cognição de sua finalidade!

Esta cognição resume a difícil tarefa do juiz de pronunciar a última palavra para a solução das controvérsias. Parece que a direita autoritária arreganha a voz de inconformismo (faz barulho e agita as ruas na tentativa de criar uma crise político-social artificial para da encenação fazer emergir um golpe), para manifestar intolerância e vontade de ver o estamento armado sobrepor, pela força bruta, esse poder simbólico que a Constituição assegura aos aplicadores da lei.

O uso da expressão “Exercício do poder que do povo emana” tem muito a ver com a fala dos inconformados quanto gritam “Supremo é o  Povo”.  Estão assumindo a ideia de que o poder que emana de nomeação constitucional não é supremo; supremo é o povo representado na vontade dos deputados federais. Razão pela qual ¹as decisões de ministros de Tribunais e de juízes não têm o poder de obrigar a ninguém, podendo ser criticadas e desobedecidas; ²os parlamentares devem corrigir atos autocráticos cometidos contra a liberdade [de opinião e de expressão].

Abusos de arbitrariedade ou desvios autocráticos que possam colocar em risco a liberdade da cidadania brasileira, foram constatados, com grande lambança, por alguns membros do Ministério Público e pelo juiz da Operação Lava-Jato que promoveram perseguição política ao líder das pesquisas eleitorais às vésperas da eleição de 2018, com incentivo e pressão do comandante do Exército, não apenas face ao juiz de piso (fortalecido), mas, principalmente, junto ao STF (ameaçado pelo Twitter).

Exatamente, para corrigir abusos de autoridade, foi editada a Lei 13.869.  Em 2019, o Congresso Nacional atualizou o crime de abuso de autoridade, incriminando a conduta do agente público que, no exercício das funções ou a pretexto de estar exercendo atribuições do cargo, abusar do poder que lhe tenha sido atribuído pela lei ou pela Constituição: 

"Constituem crime de abuso de autoridade as condutas praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal."

Confira-se a regra de interpretação deste crime que foi detalhada no parágrafo  2º do dispositivo acima:

"A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.”

Ora, a quem a Constituição entrega, com exclusividade, a missão de interpretar a lei, avaliar a veracidade dos fatos e valorar as provas apresentadas à própria cognição, com independência e liberdade de consciência?  Todos sabemos, embora alguns não aceitem ou queiram rechaçar com negacionismos: aos juízes e tribunais superiores.

Portanto, aquela proposição da Nota Militar aos Deputados da Câmara (representantes do Povo), por si, já contém grave risco de representar uma ameaça contra o Estado Democrático de Direito: sugere que o parlamento encontre meios de cercear a independência e a liberdade de decidir dos membros do Poder Judiciário, contornando garantias constitucionais da Magistratura.

Portanto, soluções falsas e simplistas com objetivo de limitar ou direcionar a interpretação e a aplicação da lei, para favorecer interesses inconfessáveis, mas, seguramente, imorais ou ilegais: subordinar a lei a interesses particulares e não ao império da igualdade e da justiça.

Isto potencializa o caos, porque, onde o direito ruir, de suas ruínas emergirá o poder das armas: a força, a violência, como instrumento de imposição da vontade dos segmentos armados. 

Este é o grande projeto de todo fascista; e é aí que o autoritarismo converge com a ganância neoliberal. Essa aliança de interesses acaba arrastando para a liga as hostes dos que pretendem sobrepor a ordem jurídica pela ordem moral religiosa, tal como se vê nos conflitos entre a modernidade e a prática de alguns segmentos do Islamismo.

 

Tudo isto nos leva a concluir o seguinte.

A vigência do Estado de Direito no regime político democrático é uma necessidade cujos interesses se apresentam absolutamente intransigíveis. A defesa desses valores não se faz com retóricas e narrativas. É um imperativo que impõe ação. Ação firme, rigorosa, legitimada pelo apego obsessivo à legalidade na esfera da competência do Poder Judiciário. Todos os crimes contra a ordem política brasileira devem ser punidos, indistintamente e prontamente.

Nunca o princípio da igualdade jurídica foi tão imprescindível quanto agora. A preservação do Estado de Direito e a defesa da Democracia são valores condicionantes da Liberdade e da Igualdade. Por mais que se valore estas duas garantias, que se relacionam com a dignidade humana, estas não podem estar acima, ou fora, do sistema normativo que garante o respectivo desfrute.

Fora da Democracia somente o regime de força pode exercer o controle social. Mas a força é, por imperativo de existência, a negação da liberdade e a afirmação da opressão que determina as desigualdades.

É este o dilema do jogo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A fala solidária de Lula e a distorção ampliada por Netanyahu

O Despacho liminar de Alexandre de Moraes e a cantilena de Silas Malafaia

De Colarinhos Brancos a Pescoços Pretos