
by José Berlange Andrade
A recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, que
suspendeu o decreto legislativo da oposição e revalidou parcialmente o decreto
do Executivo sobre o IOF, gerou mais do que polêmica: escancarou um problema
recorrente na política brasileira — a confusão entre fiscalização legítima e
sabotagem institucional.
Um deputado da oposição, em tom irônico e provocativo,
publicou em rede social que “a Constituição mudou e agora só existem dois
poderes: o Executivo e sua assessoria jurídica, o STF”. Em complemento,
sugeriu que o Congresso poderia “fechar as portas”. É evidente o
desprezo retórico por princípios elementares do Estado democrático de direito.
Pior: esse tipo de manifestação distorce deliberadamente a realidade
jurídica e institucional brasileira.
A Constituição Continua em Vigor, embora a crítica da oposição ignore que a Constituição
Federal de 1988 permanece clara em seu Art. 2º: os Poderes da União são
independentes e harmônicos entre si — Executivo, Legislativo e
Judiciário. E o Art. 5º, inciso XXXV, determina que “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Ou seja, quando há um conflito entre atos do Executivo e
do Legislativo — como ocorreu no caso da modulação do IOF —, o
Judiciário não apenas pode, como deve ser acionado para exercer o
controle de legalidade. Foi exatamente o que aconteceu. O STF não agiu
por iniciativa própria, nem como “assessoria do governo”, mas sim como instância
inercial, imparcial e constitucionalmente provocável. E, convocar a
interferência jurisdicional, não é uma conveniência, mas um dever do Chefe do
Executivo, pena de incidir em prevaricação no cargo de Presidente da
República.
O Papel do Judiciário é o de Substituir a Ação de quem opera
contrariamente à lei, mesmo contra a vontade do transgressor, fazendo em seu lugar
a’ coisa certa’. O judiciário interfere na camada da ação (fazer ou não faze),
não na esfera do pensamento ou da vontade, que continuam livres... Esta, porém
limitada pelo direito ou pela moral.
O Judiciário não decide por ideologia ou alinhamento
político. Sua função é aplicar a vontade normativa da lei, não a vontade de
homens ou partidos. Quando o Executivo edita um decreto dentro dos limites
legais autorizados, esse ato é legítimo. Se o Legislativo tenta revogá-lo por
decreto sem respeitar os limites estabelecidos no Art. 49, V da Constituição,
ele incorre em abuso. Cabe ao STF declarar a inconstitucionalidade ou nulidade
do ato, como foi feito.
O sistema é organizado para funcionar assim: a pessoa ou
autoridade que sofreu ofensa a seu direito (no caso editar o decreto
regulamentando o IOF), é obrigada a tomar iniciativa de buscar uma solução
consensual, dialogar, negociar, resolver numa boa. Se esta iniciativa falhar,
ou ser, desde logo, inviabilizada (foi este o caso, pois o deputado Hugo Mota
descumpriu o acordo realizado), então, o sistema abre as portas para o acesso
ao poder judiciário. Nesse sentido, nenhuma ofensa a direito pode ser suprimida do conhecimento e julgamento dos
juízes brasileiros. O Judiciário não pode se mexer e interferir por inciativa
própria, mas, quem tentar impedir o trabalho do judiciário depois que é
acionado, comete crime, sujeito a processo que resultará em prisão, multa e ou
outras consequências incômodas ou dolorosas.
Voltando ao caso em foco. Mais ainda: o ministro Alexandre
de Moraes não validou integralmente o decreto do Executivo. Ele anulou
a parte que excedia o que está previsto na lei, mantendo apenas o que
estava efetivamente autorizado pelo Congresso, desde há muito tempo.
Esta circunstância fática prova que o controle foi jurídico, não
político.
Por outro lado, a Oposição Precisa Lembrar da Cooperação. Como ensina o grande Santiago Dantas, nas
relações sociais de todas as esferas, só existem dois tipos de conduta
intersubjetiva: a cooperação e a competição; em qualquer situação
coletiva, os humanos estão sempre cooperando ou competindo, ou as duas coisas em
intercambiamento. Cooperando, os polos de uma relação praticam condutas
diferentes que unem forças para alcançar
um fim que interessa a todos os envolvidos (os jogadores do Botafogo entre si e
em relação com sua torcida, jogando contra o PSG). Competindo, praticam condutas iguais para
alcançar o resultado que só interessa a um dos polos (Botafogo vencendo o PSG
no Mundial de Clubes).
Pois bem. A crítica
infantil do deputado de oposição, numa abordagem séria e condigna ao cargo que
ele exerce, tem por foco o tema da Separação dos Poderes da União, que são
independentes e harmônicos entre si — Executivo, Legislativo e
Judiciário (Art. 2º da CF 88).
A separação de poderes exige cooperação para o alcance do
bem comum da sociedade como um todo, não competição permanente na
disputa pelo poder. Nesse sentido, pode-se dizer que a governança é uma
cooperação ética que realiza valores coletivos e universais; a disputa para
exercer a governança é um processo técnico (visa alcançar uma eficácia num jogo
específico, não um valor).
O sistema de separação de poderes não foi criado para
sustentar uma arena permanente de guerra. O parlamento moderno nasceu como um
limite ao poder do rei absoluto, como mostra a história da Magna Carta (1215,
emparedamento do Rei João Sem-Terra), e evoluiu para promover cooperação entre
os poderes, não rivalidade contínua.
A disputa política deve se restringir ao período eleitoral.
Fora dele, o exercício do mandato deve visar a governabilidade, e não
à sabotagem. Ao lado do dever de fiscalizar, que cabe a todos, a oposição tem
o direito de divergir, de criticar, até de obstruir — mas não o direito
de transformar o Legislativo em trincheira para impedir o funcionamento do
governo democraticamente eleito. Afinal, o principal protagonista da
eleição nacional, é o presidente da república e suas promessas de realização.
Sabotar o alcance de seu programa, equivale sabotar a vontade da maioria que
o elegeu.
Quando se confunde o papel do Congresso com o de uma
força de bloqueio total, desviando o papel institucional do Congresso - um
dos Poderes comprometidos com a independência e harmonia institucionais -,
o prejuízo é para o povo. É preciso reafirmar: a liberdade é sempre
relativa, limitada pela lei, e a vontade política só tem validade quando
respeita os marcos constitucionais. É
este imperativo do Estado Democrático de Direito que uma parte radical da
oposição não está querendo aceitar.
Por outro lado, é bom lembrar que não existe liberdade absoluta,
em nenhuma camada das relações sociais. O controle social da moral e do
direito visa, exatamente fixar os limites à liberdade. Na relação com o Estado, a liberdade
é sempre relativa e controlada pela lei, não pela vontade arbitrária.
Porque aqui, o que orienta os comportamentos privados é o princípio da liberdade
limitada: “ao particular tudo é
permitido querer e fazer, exceto o que estiver proibido por lei”.
Para finalizar este textão. O STF não é inimigo [nem
amigo] do Legislativo nem servidor do Executivo. É o guardião da
Constituição, que controla os excessos, garante os direitos e
impede a ruptura institucional.
Ignorar isso, como faz o deputado juvenil e parte da
oposição, é trair o espírito da Constituição de 1988 e flertar com o
populismo antijurídico ou com o autoritarismo ditatorial e fundamentalista!
Felizmente, e em grande parte, graças ao STF, no Brasil,
ainda vigora o Estado de Direito. E isso, felizmente, significa que nem
tudo é permitido a quem detém poder.
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