Lula, medo ou prazer de comparecer à audiência?


por José Berlange Andrade


No dia 4 de março de 2016, cumprindo mandados assinados pelo juiz Sérgio Moro (14ª VF Curitiba), a PF deflagrou a 24ª fase da Operação Lava-Jato, apelidada de Aletheia (Busca da Verdade), executando busca e apreensão de bens e de documentos, bem como a condução coercitiva do ex-presidente Lula para prestar depoimento diante do juiz, em Curitiba.  Por algum motivo ainda não suficientemente esclarecido, o mandado não pode ser integralmente cumprido e o sequestrado foi ouvido pela autoridade policial numa sala do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Essa operação foi baseada em dois pedidos feitos pelo Ministério Público na 2ª semana de fevereiro de 2016, os quais foram justificados perante o juiz sob a alegação de que “Lula foi um dos principais beneficiários do esquema de corrupção na Petrobras”, pelo qual “enriqueceu” e usou os desvios financeiros “para financiar campanhas políticas de seus aliados”.

Alegando necessidade de se apurar ”possíveis” crimes de corrupção e lavagem de dinheiro “por meio de pagamentos dissimulados feitos por José Carlos Bumlai e pelas construtoras OAS e Odebrecht ao ex-presidente da República”, a síntese dos fatos criminosos, no conteúdo da representação da Procuradoria da República-PR, é esta:
"Há evidências de que o ex-presidente Lula recebeu valores oriundos do esquema Petrobras por meio da destinação e reforma de um apartamento tríplex e de um sítio em Atibaia, da entrega de móveis de luxo nos dois imóveis e da armazenagem de bens por transportadora. Também são apurados pagamentos ao ex-presidente, feitos por empresas investigadas na Lava-Jato, a título de supostas doações e palestras."

Esses fatos teriam ocorrido no Estado de São Paulo. Para vincular sua cognição e julgamento à competência do juízo da Lava-Jato, bem como para fazer a necessária conexão com a hipótese de crime de ‘organização criminosa’, o MPF noticia a existência de um megaesquema de corrupção que atingiu a Petrobras por meio de um cartel de empreiteiras que combinava licitações entre si, adicionava de 1% a 3% no valor dos contratos e distribuía esse excedente de preço a funcionários da estatal e a políticos. Partidos e políticos recebiam o dinheiro, que "os enriquecia e financiava campanhas".   E conclui:

"Esse grande esquema era coordenado a partir das cúpulas e lideranças dos partidos políticos que compunham a base do governo federal, especialmente o Partido dos Trabalhadores, o Partido Progressista e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro. O ex-Presidente Lula, além de líder partidário, era o responsável final pela decisão de quem seriam os diretores da Petrobras e foi um dos principais beneficiários dos delitos."

Na execução dos sequestros de provas, por ocasião da condução coercitiva do ex-presidente Lula, também foram feitas buscas e apreensões em sua casa e no Instituto Lula.  Simultaneamente, foram cumpridos mandados na casa do filho de Lula, Fabio Luiz Lula da Silva, e condução do presidente do Instituto Lula, Paulo Okamoto.

Rastreado o mundo inteiro. Reunido todo o material probatório que pode ser alcançado pela operação policial, a expectativa inicial sobre os fatos – que “justificou” o uso dos atos de força contra o ex-presidente da República – ficou assim reduzida, na pretensão condenatória da denúncia do MPF: 1) Lula teria recebido R$ 3,7 milhões em benefício próprio - de um valor de R$ 87 milhões de corrupção - da empreiteira OAS, entre 2006 e 2012.   2) As condutas ilícitas de Lula são restritas a dois fatos: a) ao recebimento de vantagens ilícitas da empreiteira por meio da reforma do tríplex 164-A no Edifício Solaris, b) ao armazenamento de bens do acervo presidencial, mantido pela Granero de 2011 a 2016. Daí a possível tipificação de dois crimes:  lavagem de dinheiro e corrupção.

Mesmo sem ter sido apresentada nenhuma prova documental ou material eficaz para um jurídico convencimento do juízo e tranquilidade da sociedade esclarecida, o juiz Sérgio Moro aceitou a denúncia em 20 de setembro de 2016.

No dia 10 de maio de 2017, o ex-presidente Lula compareceu à 14ª VF de Curitiba, caminhando à frente do povo que acredita na sua versão dos fatos, até prova eficaz em contrário: ¹não é dono do Triplex e ² desconhece que sua esposa Marisa Letícia tenha autorizado as reformas que nele foram feitas por iniciativa do novo vendedor (OAS) – ou seja, tudo em conformidade com o que Lula já havia afirmado no dia 4 de março de 2016, à autoridade da PF, numa sala do aeroporto de Congonhas-SP:

O Edifício Solaris era da Cooperativa Habitacional dos Bancários (Bancoop), a cooperativa fundada nos anos 1990 por um núcleo do PT. Em dificuldade financeira, a Bancoop repassou para a OAS empreendimentos inacabados, revoltando aos cooperados.
A ex-primeira-dama Marisa Letícia assinou Termo de Adesão e Compromisso de Participação com a Bancoop e adquiriu "uma cota-parte para a implantação do empreendimento, em abril de 2005.
Em 2009, a Bancoop repassou o empreendimento à OAS e deu duas opções aos cooperados: ¹ solicitar a devolução dos recursos financeiros integralizados no empreendimento ou ² adquirir uma unidade da OAS,   utilizando, como parte do pagamento, o valor já pago à Bancoop.
A ex-primeira-dama não exerceu a opção de compra após a OAS assumir o imóvel.   Em 2015, Marisa Letícia pediu a restituição dos valores colocados no empreendimento.

É dos marcos deste horizonte que se deve extrair a compreensão dos fatos e dos debates que ocorreram no interrogatório do dia 10 de maio, ato cuja utilidade processual penal restringia o poder do juiz Sérgio Moro (e das partes da ação), de questionar Lula sobre as reformas custeadas pela OAS no tríplex 164-A, cuja circunstância é apresentada na denúncia como ‘lavagem de dinheiro’, em conexão com ‘corrupção passiva’ que se quer tipificar com o armazenamento de bens do acervo presidencial, mantido por empresa transportadora privada.

Da exibição dos documentos probatórios (que não existem eficazmente no processo) e da análise das perguntas e das respostas dadas por Lula, sobre essas duas circunstâncias fáticas, é que se pode avaliar a tendência do resultado técnico do interrogatório: se favorável ou desfavorável à condenação de Lula.

Há, de qualquer forma, desde logo, uma certeza jurídica: mesmo que haja condenação, não poderá decorrer, da vontade do juiz autor dessa decisão, a prisão do ‘molusco’.

Essa certeza justifica a tese de Lula: o processo tem objetivo político – a suspensão dos seus direitos políticos, o que poderia impedir o candidato do PT de concorrer nas eleições e 2018, caso o tribunal superior consiga dar ao processo velocidade de um trem bala para, ao final do julgamento coletivo, confirmar a decisão condenatória do juiz Sérgio Moro (que poderá, também, alternativamente, ser anulada ou reformada).

Sérgio Moro, num gesto de coragem, de desprendimento e de justiça, poderá absolver o ex-presidente das pálidas acusações que o MPF faz a Lula, apontando-o como o "chefe do sistema de corrupção política" que está funcionando há mais de 35 anos no País, beneficiando a todos os partidos políticos, inclusive distribuindo dinheiro para a eleição de pessoas como FHC, Aécio, Temer, Cunha, Serra, Alckmin e outros que foram delatados com o reforço de provas documentais e materiais.

Por isso que o gesto mais significativo da audiência foi protagonizado por Lula, com a colaboração espontânea do juiz Sérgio Moro: “se não está assinado por ninguém, por gentileza, guarde esse papel.
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Para melhor compreender como se chegou até este momento crítico da Lava-Jato, por favor, faça esta outra leitura:

A escalada de erros da Lava Jato - uma reflexão de Gerson Sicca.





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