De Colarinhos Brancos a Pescoços Pretos




No Brasil, o planejamento inspirado na genialidade descolada de valores universalmente legitimados por dados da nossa realidade tende a levar os executores a dar com os burros n'água. O primeiro passo para a eficácia de um plano é reconhecer que não existe, dentre os homens, um salvador da Pátria; nem dentre as instituições sociais, uma que resolva tudo. 

Há alguma atitude que nos ajude a não cair na ilusão?  Sim, a certeza de que não existe solução simples para problema complexo. Segundo, só se resolve um problema quando se vai à raiz de suas causas; proposta que ataca os efeitos ou é simbólica (para inglês ver) ou é equivocada, por ignorância ou má-fé. E se a medida visa matar bonecos - deixando intacta e em funcionamento a fábrica que os produz - implicar gastos elevados e de difícil comprovação, em ano eleitoral, é preciso ter cuidado com a tal da corrupção que financia eleição.

Muito da crise que assola o Brasil tem origem numa ponta da avolumada raiz que se alimenta de "faz de conta". Faz de conta que resolve o problema da saúde, faz de conta que resolve o problema da segurança pública, quando, na verdade, o interesse é capturar o apoio do senso comum para conquistar ou se manter no poder.  

Naquela época em que o general Mourão andou palestrando na Maçonaria uma menção de sua fala chamou a atenção: havia algum planejamento relacionado com a situação política que o País experimenta até hoje.  No eixo central dessa crise é manifesta a pretensão de substituir o governo socialdemocrata, pró salários, por uma experiência neoliberal pró mercados.  Ora, esse projeto de alternância já vinha sendo executado, pelo menos, desde 2010 por meio de intensa campanha midiática com uso da manipulação, fase que atingiu seu objetivo com o impeachment da presidenta Dilma. 

Imediatamente, o protagonismo foi assumido pela Lava Jato com apoio da grande mídia objetivando impedir que a liderança de Lula participasse das eleições de 2018; para tanto, foi usado o poder de persuasão da autoridade judicial. Apesar de inocente, Lula está condenado, ameaçado de prisão e inelegível. E as pesquisas deixam claro que a decisão não convenceu à maioria dos eleitores, apesar do apoio emprestado pela manipulação ao exercício do poder simbólico da persuasão.

Finalmente, veio o Carnaval com a mídia dando mais ênfase à violência que à alegria fantasiosa das ruas escrachantes. 

Estaria aí o pretexto para o início da terceira e última fase do golpe?   
Como se sabe, só existem três técnicas de exercício do poder: manipulação, persuasão e força.

A força está nas ruas, "sem planejamento algum" -  apressa-se o porta-voz do governo... Será?

Em agosto de 2017, numa postagem do Twitter, o General Villas Boas invocou uma “questão de segurança pública” e perguntou se “o país estaria preparado para efeitos colaterais advindos do enfrentamento efetivo ao Crime Organizado? ”

Foi questionado com outra pergunta: as instituições do sistema de controle social estariam preparadas, com pré-compreensão da natureza e diversidade de resposta, para enfrentar a complexidade do crime organizado?

Referindo à natureza do problema, apontou-se que o crime organizado lida com estrutura econômica em todas as suas fases: produção, armazenamento, transporte e distribuição de bens para o consumo.

Dentro desse horizonte estão incluídas todas as atividades econômicas, tanto as de mercados controladas e protegidas pela Ordem jurídica quanto as que, na ilegalidade, atuam controladas por máfias em regime de autodefesa (força, violência) do próprio negócio.

A complexidade referida é duplamente problemática: há o crime organizado de colarinho branco que assume faixada formal que possibilita a sua camuflagem dentro do conjunto das atividades lícitas de mercados, a especialidade aí está na arte de dar aparência de legalidade às atividades ilícitas. 
Há o crime organizado de pescoço escuro. A este a natureza privou de mimetismo quando lhe abundou a melanina. A sua camuflagem deve ser feita, não no espaço em que exerce a sua atividade ilícita, mas no ambiente onde vive; portanto, dentro de uma comunidade de iguais: minoria de bandidos dentre maioria de trabalhadores honestos. Aqui, a sobrevivência do criminoso de pescoço preto é garantida pelo tráfico de drogas e, o negócio, mantido pelo tráfico de armas. Estas duas fábricas não estão no morro, mas no asfalto da beira-mar.  

Parece que o principal efeito simbólico da 'intervenção' estará na ocupação das praias da zona sul por tanques e blindados de combate emitindo mensagens para dissuadir e afastar dali o 'inimigo' da classe média, dada ao ócio e ao consumismo.

No Brasil, a julgar pelos movimentos do golpe de 2016 que derrubou a presidenta eleita pelo povo em 2014, sob influxo aparente do ‘Destino manifesto’, uma estratégia está sendo posta em prática: a Polícia federal está sendo redirecionada para combater o colarinho branco e o Exército brasileiro está sendo transformado para enfrentar o pescoço preto.  No plano teórico, do planejamento estratégico, a proposta representa uma alternativa à falta de respostas para os problemas do crime e da segurança pública, numa quadra histórica marcada pelo esgotamento das possibilidades de o capitalismo responder satisfatoriamente aos interesses das maiorias.

Mas, na prática, o operacional que coube à Polícia federal executar deu com os burros n’água. Mais uma vez, o faz de contas.
O sistema judiciário confiou a tarefa a um grupo de identidade político-ideológica afinada com o neoliberalismo e, como resultado, o combate à corrupção (colarinho branco) só teve eficácia para derrubar o governo de centro-esquerda e para erguer obstáculos jurídicos para impedir que o líder socialdemocrata retorne à presidência do País.

A corrupção que se combateu foi aquela adstrita ao esquema de financiamentos de campanha pelo uso de caixa dois administrados por empreiteiras de obras públicas.  No plano da economia, essas empresas foram destruídas e, com a transferência desse mercado para o controle estrangeiro, 13 milhões de brasileiros amargam as dores do desemprego.

Agora, o governo decreta a chamada do Exército brasileiro para o enfrentamento do crime organizado de pescoço preto.
Os soldados, certamente, vão dar o melhor de si para executar o que aprenderam a fazer: ocupar espaço para aniquilar o inimigo.

Vão obter êxito no enfrentamento do crime de modo a devolver ao Rio de Janeiro a segurança que o Governo Temer está a prometer? Será esta, verdadeiramente, a promessa que está por detrás da iniciativa de Temer?

Quanto ao sentido da "intervenção militar" na "segurança pública" do Rio, o decreto presidencial mais esconde que revela. Resta acompanhar a prática para ver a que serve.

O fato é que a turma do faz de contas viu no decreto um bom motivo para prolongar o Carnaval de Besteiras que Assola o País. 

No mesmo Twitter, vê-se que o decreto de Temer excitou exageradamente o ânimo das pessoas autoritárias, entendido assim aqueles que acreditam que o uso da violência pela força pública seja o remédio suficiente e eficaz para resolver todos males do País.

A cada nova postagem do comandante, os comentários são cada vez mais diretos e abrangentes: “traficantes tem de ser dizimados! “, “a intervenção deve ser nacional! ”, “comecem prendendo todos oficiais superiores da PMRJ e delegados da PCRJ. É nessas ‘autoridades’ que se encontra o apoio ao crime organizado”, “Comecem pelas Câmaras de Vereadores Municipais, pelas Assembleias Legislativas dos Estados, pelo Congresso Nacional”, “Prendam logo toda corja que está em Brasília”.

Do ponto de vista lógico, a racionalidade indica que a tática de ocupação de cabeça de praia deve ser aplicada na tarefa de organizar a própria casa.  Se o general interventor não conseguir, desde logo, separar joio de trigo dentro das polícias preventiva e repressiva do Rio de Janeiro, não terá sucesso algum nos passos seguintes.

Realmente, a grande dificuldade da missão assumida pelo Exército será distinguir – na camuflagem comunitária – bandido de trabalhador, até porque o governo que comandou a invasão das favelas é o mesmo que transformou a maioria dos trabalhadores da periferia do Rio de Janeiro em desempregado. Como distinguir trabalhador desempregado pelo governo de bandido empregado pelo tráfico?  Pela exibição da carteira de trabalho assinada?  É mais fácil ao PCC e ao CV blindar seus "empregados"...

E aí, aparece o risco de o Exército incorrer no mesmo erro da Lava Jato: condenar inocente e absolver bandido.

Seria esta tragédia um efeito colateral?


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