Nota técnica conjunta do MPF-PGR sobre a Intervenção no Rio



Nota técnica do MPF sobre a Intervenção no Rio

1. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PGR-00072549/2018 NOTA TÉCNICA CONJUNTA Nº 01/2018

Tema: Intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018.

A intervenção é um mecanismo clássico do federalismo e conta com disciplina expressa na Constituição brasileira. Como tal, sujeita-se, desde a sua concepção até a sua execução, a modalidades de controle político, judicial e social.
No caso do decreto acima identificado, o seu propósito é “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” no Estado do Rio Janeiro, especificamente na área de segurança pública, hipótese textualmente prevista no art. 34, III, da CR.
Todavia, o decreto ressente-se de vícios que, se não sanados, podem representar graves violações à ordem constitucional e, sobretudo, aos direitos humanos.
A esse cenário se somam declarações recentes do Ministro da Defesa, vocalizando a intenção do interventor de requerer judicialmente mandados coletivos de busca, apreensão e captura, demandam que órgãos de coordenação do Ministério Público Federal externem a sua compreensão sobre as questões que essa intervenção suscita.

I – A amplitude e o prazo da intervenção
O § 1º do art. 36 da CR, que inicia a disciplina do decreto interventivo, diz que este “especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução (...)”. Essa proeminência no detalhamento da intervenção encontra fundamento nos valores centrais do texto constitucional: o regime federativo e os direitos fundamentais.  

No primeiro caso, a previsão das medidas a serem adotadas pelo interventor federal revelará o quanto de autonomia estadual será limitado. E, no segundo, permitirá o controle antecipado de sua compatibilidade com os direitos fundamentais, limite de toda e qualquer atuação estatal.
O decreto em análise não cumpre com essa exigência. Em seu art. 3º, caput, diz que “as atribuições do interventor são aquelas previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro necessárias às ações de segurança pública, previstas no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro”.
Trata-se, apenas, de deixar claro aquilo já enunciado no art. 1º, que é o propósito da intervenção: substituir o governo estadual (cujas atribuições estão previstas no art. 145 da Constituição do RJ) na área de segurança pública (objeto do Título V, arts. 183 a 191, da Constituição do RJ).
Não se revela aqui quais as providências específicas que serão adotadas na execução da intervenção. Os demais dispositivos do decreto, por sua vez, tratam de competências genéricas do interventor, reproduzindo as já previstas no âmbito estadual, sem qualquer menção às medidas interventivas que serão adotadas. Dizem respeito às “condições de execução”, e não aos demais requisitos do decreto.
É inquestionável o caráter de excepcionalidade que reveste o instituto da intervenção. Walter Claudius Rothenburg, em artigo pendente de publicação, ensina: A Constituição atribui caráter excepcional à intervenção, seja porque estabelece, no quadro dos princípios fundamentais, a “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” ; seja porque consagra a autonomia dos entes federativos; seja porque formula o regime de intervenção de forma negativa (“A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para...”); seja porque dispõe que “a forma federativa de Estado” é cláusula pétrea, relativamente imune à reforma constitucional; seja porque inibe emendas à Constituição; seja porque configuram crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra a existência da União e o livre exercício dos Poderes constitucionais das unidades da Federação. Tais aspectos explicam o cuidado do texto constitucional quanto ao detalhamento que exige do decreto interventivo. A excepcionalidade da intervenção também vai demandar justificativa quanto ao prazo de sua duração. Ou seja, a medida é, em princípio, de curta duração, para fazer face a uma situação que se supõe seja uma disfuncionalidade ocasional e episódica no exercício autônomo dos entes federativos. A previsão de um prazo alargado, que vai até 31 de dezembro de 2018, de forma peremptória e sem considerar eventual evolução da situação, parece atentar contra a exigência constitucional.

II – A obrigação de respeitar a legislação estadual

A ausência de enunciação das medidas preventivas a serem adotadas potencializa a preocupação com o conteúdo do § 1º do art. 3º do Decreto 9.288, no sentido de que “o interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”.
Não parece razoável supor que o decreto em questão esteja a pretender suspender vigência e eficácia de legislação estadual. Não só pela sua inaptidão formal para tanto, mas porque não há, na Constituição, dispositivo que dê ao decreto interventivo tamanha possibilidade. A intervenção federal é uma medida extrema, porém menos grave do que o Estado de Defesa (art. 136) e o Estado de Sítio (art. 137). Na intervenção federal não pode haver restrições a direitos fundamentais, diferentemente das duas outras situações, para as quais a Constituição admite a temporária limitação de alguns direitos.
Em realidade, a intervenção federal tem uma aproximação com a finalidade de preservar os direitos fundamentais e a democracia, podendo ser decretada – dentre outras hipóteses – com o objetivo de garantir a separação de poderes (art. 34, IV e VI), assegurar a forma republicana, o sistema representativo e o regime democrático (art. 34, VII, a), e o respeito aos direitos humanos (art. 34, VII, b e e). Nesse sentido, não se concebe que uma intervenção federal no Poder Executivo de um Estado da Federação possa ser fonte de desrespeito à autonomia dos poderes Legislativo, Judiciário, ou mesmo à atribuição do Ministério Público.
Essa leitura parece bastante evidente, pois, como referido, a restrição de direitos humanos ou fundamentais, assim como o atentado à separação de poderes, são também causas de intervenção e, portanto, jamais podem ser consequência desses atos.
O interventor, tal como prevê inclusive o decreto, assume as competências do Governador na área de segurança pública e deve agir de conformidade com a legislação que regula a matéria.
O interventor é, portanto, uma autoridade federal, com poderes civis, no que diz respeito à origem de seu poder; porém é uma autoridade estadual no que que concerne ao exercício das competências estaduais.
Assim, por exemplo, iniciativas de reorganização da polícia civil ou militar por força da intervenção deverão necessariamente seguir a legislação local. Da mesma forma, atos de demissão ou nomeação de autoridades estaduais estarão submetidos às regras da legislação estadual pertinente. E, do mesmo modo, a ordenação de despesas seguirá as regras financeiras do ente federal sob intervenção.
Do contrário, a intervenção menosprezará o Poder Legislativo estadual e violará nitidamente a separação de poderes. A pretensão de suposta indenidade do interventor às leis estaduais violenta um dos pilares do regime democrático e abre grave precedente para, em pouco tempo, investir-se contra decisões de outros poderes estaduais, inclusive o Judiciário.

III – Natureza civil da intervenção

O Decreto nº 9.288/18 determinou intervenção parcial no Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro, “limitada à área da segurança pública” (art. 1º, § 1º). O interventor foi nomeado para assumir parte das competências do governador de Estado (decreto, art. 3º).
A natureza da função a ser exercida pelo interventor é, portanto, aquela de governador de Estado, por definição constitucional um cargo de natureza civil. Nada obsta que um militar seja designado para assumir essa função, tal como previsto na Constituição (art. 142, § 3º, II e III), porém esse fato não transmuda a natureza da função.
O decreto interventivo estipulou no art. 2º, parágrafo único, que o cargo de interventor é de “natureza militar”. Trata-se de preceito que deve ser interpretado no estrito âmbito das relações militares, que definem a existência de “cargos de natureza militar” para fins de agregação (Lei nº 6.880/80 e Decreto nº 9.088/17), ou seja, afastamento (temporário ou permanente, a depender do cargo civil) do militar de sua função ordinária, para plena assunção do cargo de natureza civil.
Em hipótese alguma a previsão no decreto interventivo da “natureza militar” do cargo de interventor alterará a substância civil de sua atuação, inclusive para fins de definição da jurisdição competente para o controle de seus atos e sobre a sua responsabilidade.
Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da função de interventor com o desempenho de função estritamente militar será inconstitucional. A intervenção federal no Poder Executivo estadual é, por definição constitucional, de natureza civil e não pode um decreto instituir uma intervenção militar, sob pena de responsabilidade do próprio Presidente da República que o emitiu.  

Convém nesse ponto ressaltar que, a par da natureza civil da intervenção, os atos do interventor, ainda que um militar, não poderiam atrair a competência da jurisdição militar.
A interpretação restritiva à competência da jurisdição militar já foi enfrentada pela Conselho de Direitos Humanos da ONU, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, todos de acordo em que deve vigorar, na matéria, o “princípio da especialidade”, que é aquele que atribui “jurisdição militar aos crimes cometidos em relação com a função militar, o que a limita a crimes militares cometidos por elementos das forças armadas”. Segundo os sistemas internacionais de direitos humanos, essa jurisdição deve ser restrita, excepcional e de competência funcional.

IV – Mandados de busca, apreensão e captura coletivos

O ministro da Defesa anunciou na imprensa que uma das medidas a serem adotadas durante a intervenção poderia ser a requisição de mandados de busca e apreensão e de prisão “genéricos”, nos quais não serão especificados os destinatários das prisões e demais medidas cautelares.
Tal procedimento é ilegal, uma vez que o Código de Processo Penal determina a quem deve se dirigir a ordem judicial. Mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio, bem como do dever de fundamentação das decisões judiciais. Por outro lado, a expedição de ordens judiciais genéricas, destinadas a serem cumpridas contra moradores de determinadas áreas da cidade, importa em ato discriminatório, violando o disposto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal.
Isso porque faz supor que há uma categoria de sujeitos “naturalmente” perigosos e/ou suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar onde moram.

Finalmente, convém lembrar que o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo descabimento de “habeas corpus” coletivo, o que, logicamente, impede atos de constrição de liberdade de natureza igualmente coletiva.

V- Conclusões

Na sequência da decretação da intervenção, a imprensa vem divulgando, além daquela atribuída ao Ministro da Defesa, declarações de autoridades federais civis e militares que direta ou indiretamente defendem a violação de direitos humanos por parte do interventor e das Forças Armadas que estão sendo mobilizadas para participar do esforço interventivo, ou pelo menos, a impunidade para eventuais abusos.

Essas declarações são de extrema gravidade, pois podem produzir o efeito de estimular subordinados a praticarem abusos e violações aos direitos humanos, atingindo de modo severo a população do Rio de Janeiro, que historicamente suporta a violência em geral e a violência estatal em particular.
A intervenção não pode ser realizada à margem dos direitos fundamentais. Ao contrário, somente será constitucional se for implementada para a garantia dos direitos fundamentais, inclusive à segurança pública, ao devido processo legal, à ampla defesa, à inafastabilidade da jurisdição, etc.
Assim, os signatários dessa nota técnica não a podem concluir sem manifestar sua perplexidade com as declarações atribuídas ao Comandante do Exército, no sentido de que aos militares deveria ser dada “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, e ao Ministro da Justiça, o qual, em entrevista ao jornal Correio Brasiliense fez uso da expressãoguerra”.
Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos.
As autoridades, todas de alto escalão, que assim se manifestam em relação à execução da intervenção colocam sob suspeita os propósitos democráticos do ato e demandam dos órgãos públicos comprometidos com os direitos fundamentais e a defesa da Constituição uma postura de vigilância e controle sobre o desenvolvimento de sua implementação.
Os signatários têm a plena convicção de que organizações criminosas, incluindo milícias, devem ser investigadas com técnicas modernas que atinjam o seu financiamento e o lucro auferido com suas atividades ilegais.

Brasília, 20 de fevereiro de 2018

DEBORAH DUPRAT
PROCURADORA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO
LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN
COORDENADORA DA 2ª CCR
DOMINGOS SÁVIO DRESCHER DA SILVEIRA
PROCURADOR FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO SUBSTITUTO
MARLON ALBERTO WEICHERT
PROCURADOR FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO ADJUNTO


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