A era do humanismo está terminando
por Achille Mbembe*
Sob a ocupação
israelense por décadas, Gaza continuará a ser a maior prisão a céu aberto do
mundo.
Nos Estados
Unidos, o assassinato de negros pela polícia continuará ininterruptamente e
mais centenas de milhares se juntarão aos que já estão alojados no complexo
industrial-carcerário que foi instalado após a escravidão das plantações e as
leis de Jim Crow.
A Europa
continuará sua lenta descida ao autoritarismo liberal ou o que o teórico
cultural Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar dos complexos
acordos alcançados nos fóruns internacionais, a destruição ecológica da Terra
continuará e a guerra contra o terror se converterá cada vez mais em uma guerra
de extermínio entre as várias formas de niilismo.
As desigualdades
continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo
renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma
de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas,
xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.
A difamação de
virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a
crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que
importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última
instância, a coisa certa.
Com o triunfo
desta aproximação neodarwiniana para fazer história, o apartheid, sob diversas
modulações, será restaurado como a nova velha norma. Sua restauração abrirá
caminho para novos impulsos separatistas, para a construção de mais muros, para
a militarização de mais fronteiras, para formas mortais de policiamento, para
guerras mais assimétricas, para alianças quebradas e para inumeráveis divisões
internas, inclusive em democracias estabelecidas.
Nenhuma das
alternativas acima é acidental. Em qualquer caso, é um sintoma de mudanças
estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida que o novo
século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da Segunda Guerra
Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do
comunismo, esse mundo acabou.
Outro longo e
mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não
será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o
capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre
o humanismo e o niilismo.
O capitalismo e a
democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no
começo dos anos 1990 com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União
Soviética e o advento da globalização, seus destinos foram desenredados. A
crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a
civilização.
Apoiado pelo poder
tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o
mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo,
transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os
atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas
inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam
relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra: a liberdade
individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o
culto à ciência, à tecnologia e à razão.
Cada um destes
elementos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é
compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o
choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais
significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma
paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de
paixões, emoções e afetos.
Nesta nova
paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O
próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação
da verdade. Como os mercados estão se transformando cada vez mais em estruturas
e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez
de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o
que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados
principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento,
tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver
nada para vender.
A noção humanística
e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será
substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já em
construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não será o indivíduo
liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que poderia ser o tema da
democracia. O novo ser humano será constituído através e dentro das tecnologias
digitais e dos meios computacionais.
A era computacional
– a era do Facebook, Instagram, Twitter – é dominada pela ideia de que há quadros
negros limpos n,o inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a
tampa que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente, mas se
converteram nas novas infraestruturas do inconsciente. Ontem, a sociabilidade
humana consistia em manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o
social significava exercer vigilância sobre nós mesmos, ou delegar a
autoridades específicas o direito de fazer cumprir tal vigilância. A isto se
chamava de repressão.
A principal função
da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem todos os
desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de
limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de
todos. Em parte graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que
desencadearam, o inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não
é mais necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a forma
está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a acreditar que a
mediação já não é necessária.
Isso explica a
crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo
geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia
ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização
de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois,
em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as
condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal
sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma
guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de
gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma
guerra contra os deficientes.
O capitalismo
neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos
dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma
exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam
genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza – o sagrado, a
hierarquia, a religião e a tradição. Eles acreditam que as nações se
transformaram em algo como pântanos que necessitam ser drenados e que o mundo
tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo deve ser limpo.
Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta para
restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos dentre eles,
aos fracos em que não querem se transformar.
Neste contexto, os
empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira
convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização
e pelas suas identidades arruinadas.
A política se
converterá na luta de rua e a razão não importará. Nem os fatos. A política
voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um ambiente
ultracompetitivo.
Sob tais
condições, o futuro da política de massas de esquerda, progressista e orientada
para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado na objetivação de todos e
de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a
ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação
da própria possibilidade da política. Se a civilização pode dar lugar a alguma
forma de vida política, este é o problema do século XXI.”
Escreveu extensivamente na história e política
africanas, incluindo La naissance du maquis dans le Sud-Cameroun (Paris:
Karthala, 1996). On the Postcolony foi
publicado em Paris em 2000 em francês e a tradução em inglês foi publicada pela
University of California Press, em Berkeley, em 2001. Em 2015, a Wits
University Press publicou uma nova edição africana. Ele tem uma classificação
A1 da National Research Foundation.
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