O acerto da decisão do presidente do STF nestes tempos de riscos



Parece estar claro mesmo para o senso comum que algumas coisas não estão funcionando bem na vida social. Suponho que a estrutura da modernidade - forjada pelo iluminismo sobre os escombros do feudalismo para modelar esta sociedade, fundada no Estado de Direito para a gerência do sistema capitalista – está sendo impactada por uma transição que soterra a plataforma do industrialismo ao mesmo tempo em que força o reordenamento de todas as relações sociais à hegemonia do capital financeiro. Razão pela qual, estamos experimentando uma crise sem precedentes na esfera da normatividade da vida social: um verdadeiro embate entre a razão e a emoção, no foro individual da subjetividade, e, na intersubjetividade das relações de poder, entre as forças manipulativas e as persuasivas. Na macro esfera da normatividade, uma gerra entre a ética e a técnica – aquela visando princípios e valores e esta pragmatismo e eficácia.
Para dificultar mais ainda os processos de tomada de decisão, esses confrontos acabam opondo interesses na esfera dos sistemas de controle do comportamento humano: por um lado, os mercados  - numa luta progressiva para reorganizar e expandir o consumo - exige mais liberdade de ação para promover, simultaneamente, mais liberacionismos nos costumes com suporte no avanço da ciência e da tecnologia; por outro, o estado constitucional de direito, sofrendo pressão dos setores conservadores da sociedade civil organizada no sentido de combater a anomia, pautar as liberalidades e oprimir as ‘libertinagens’, restaurar o respeito às instituições e a obediência às autoridades, em todas as esferas do poder social (família, religião, escola, etc).  
Esse complexo pano de fundo é propício a desencadear sucessivas ondas de tempestade perfeita. Daí, dois efeitos inevitáveis: o aguçar do medo, da insegurança e da agressividade nos herdeiros de Parmênides – para o mundo que eu quero pegar o trem de volta para o passado! O impulso à criatividade, à transformação e à adaptação nos sucessores de Heráclito.
Está constituído aí o caldo de cultura em que fervilham as divisões em todas as relações e em todas as esferas da frondosa vida social:  ‘raça’,  classe, nacionalidade, família, escola, religião, trabalho e instituições em geral.
Com a derrota do supremacismo arianista e fascista na segunda grande guerra mundial, vencidos os temores da guerra fria pelas transformações que reformaram os regimes dos países socialistas do leste e da ásia, parecia que experimentaríamos o triunfo do capitalismo. A crise de liberalidades concedidas a banqueiros e rentistas pôs um marco de alerta quanto a possibilidade de derrocada do capitalismo ocidental. Ao mesmo tempo, o que parecida derrocada do socialismo no final dos anos 80, no início do século XXI, pôs em relevo o gigantismo assombroso da China, na esfera da economia competitiva, e da Rússia como potência armamentista para um eventual confronto bélico, resultando em novos movimentos que desembocaram na formação dos Brics.
Decorre desses fatores, de modo geral, uma nova tensão que perturba o equilíbrio geopolítico sob a liderança hegemônica dos EEUU e da Europa.  Com a ascensão de Trump à Casa Branca essa tensão só tem aumentado, causando insegurança, medo e desconfiança – principalmente nos países periféricos que permaneceram numa visão de mundo que foi construída para lidar com as relações da guerra fria: extremado temor baseado numa crença que enxerga comunismo em tudo que se mova ao impulso das águas ou dos ventos.
Estamos vivendo novamente em ambiente de guerra, guerra virtual que relativiza o conceito de verdade: a “verdade ética” (o alcance do fim só é válido se for ético: está condicionado a escolha do único meio, posto desde antes pela moral ou pelo direito - dito legítimos), está perdendo força para a “verdade técnica”: o fim do comportamento humano é o alcance do resultado desejado, para alcançar esta eficácia o uso de qualquer meio é válido; razão pela qual todas as possibilidades têm de ser postas à mesa, devendo a escolha priorizar o menor custo, rapidez e eficiência... O resto será mi mi mi.
 Então, há, também, no interior desses conflitos um problema que requer uma margem de manobra para que o sujeito decisor encontre um ponto de equilíbrio para o uso simultâneo de duas plataformas diferenciadas, uma da modernidade – dita analógica; outra da pós modernidade, de uso  digital.  Ou seja, envolve a adequação do manejo operacional à mídia de papel ou à mídia virtual. Problemas de escolha de sistema em adequação à interação com o respectivo ambiente.
 Todas essas questões, por menos que transpareça, devem entrar em campo no jogo de análise da decisão do min. Dias Toffoli, presidente do STF, que instaurou um inquérito para apurar ameaças aos membros do Tribunal, a partir de mensagens e discursos de procuradores da Lava Jato, dentre outros casos de ofensas às prerrogativas institucionais.   
 Essa decisão tem recebido crítica de analistas analógicos, aparentemente, por captarem a trama dos fatos por meio de olhares prisioneiros das sobrevivências estruturais da modernidade em crise.
 Não há fato protegido de simplicidade na esfera da experiência jurídica. Quando a sociedade e as instituições estão afetadas por interferências subjetivas impulsionadas por paixão ou ideologia política ou religiosa, a complexidade dos fatos aumenta ainda mais, dificultando a leitura isenta que requer a objetividade da compreensão jurídica.
A aplicação da lei à disciplina dos fatos também está condicionada a variáveis que vão determinar o alcance ou a frustração da finalidade perseguida, com base em interferências relacionadas a que gravitam, consciente ou inconscientemente, na esfera da subjetividade do operador jurídico.
O ambiente de pós modernidade é um espaço de divisão ideológica, de crise de valores e de princípios, marcado de incertezas próprias destes tempos niilistas. A ideia de segurança jurídica foi forjada quando o conceito de segurança moral caiu por terra junto com os escombros medievais. No ambiente hodierno, a ideia de segurança se finca na posse da riqueza garantida pelo controle sobre o uso da força e da violência estatizada. É forte a formação de um consenso para identificar o elemento básico destas transitórias relações sociais: exatamente o oposto do elemento básico da modernidade - a Segurança Jurídica -  experimentamos nesta quadra a Sociedade de Riscos, ou seja, de predominância das contingências que cobram respostas ad hoc e medidas de exceção...
Em termos práticos: quantos confiam na polícia (milícias?) submissas às escolhas políticas de Bolsonaro? Quais parcelas da sociedade dividida confia na polícia obediente às arbitrariedades de Moro? A relação de Moro com o STF é de cooperação ou de competição?  A PGR aparece na cadeia que o liga ao STF, como coadjuvante ou como predador? Qual a margem de risco, quanto a quebra das expectativas dos ministros do STF resultar em contingência de frustração?  Enfim. Se o STF pretende alcançar eficácia com a iniciativa investigatória, nesta ambiência de dissenso, infidelidade e ativismo político generalizado, como garantir a efetividade de seu papel jurisdicional?
 É fato que a autoridade do STF está sob ataque. E tudo indica que são poucos os aliados do sistema para a defesa da instituição, principalmente depois de grande protagonismo na esfera do ativismo a que foi chamado pela elite temerosa de fantasmas políticos. 
As críticas publicadas no jornal O Globo.
         -       “O Supremo é  ‘Estado julgador’ e deve manter a necessária equidistância quanto a fatos que surjam em termos de persecução criminal.”
  -       O presidente não poderia ter aberto a investigação “de ofício” — ou seja, sem que a Procuradoria-Geral da República tivesse feito o pedido antes. 
  -       “O Supremo deveria, pelo nosso sistema penal constitucional, primeiro pedir a instauração de um inquérito perante a Procuradoria-Geral da República, ou perante a Polícia Federal, que são os órgãos de investigação. O Supremo não tem poderes para abrir uma investigação criminal.”
 -       Um terceiro ministro afirmou que o inquérito, agora que já está aberto, deveria ser submetido à PGR, para o órgão indicar as diligências a serem feitas”, afirmou o jornal. 
      -       Deveria ter submetido ao plenário. Ali, haveria quem se manifestaria  ¹contra a instalação do inquérito e ²contra a designação de um relator, porque: o inquérito deveria ter ido à distribuição aleatoriamente via computador, o presidente deveria acionar PGR em inquérito contra procuradores da Lava Jato.
 Estas as manifestações publicadas com o objetivo de apontar equívocos na decisão de Toffoli que instaurou Inquérito de ofício e nomeou o min. Alexandre de Moraes como relator.
Pois bem.
Com todo respeito que merecem essas críticas, fui à leitura do regimento interno do STF e não encontrei nada que deslegitime a decisão do presidente da Casa.
Os argumentos críticos incorrem em um equívoco básico e abrangente: adotam como ponto de partida a distinção que resulta de um princípio de divisão do trabalho fundado na especialização: o STF é o órgão estatal supremo da função jurisdicional, isto é, aquele que é especializado para conhecer e julgar matérias relevantes de distinção constitucional. É órgão de decisão judicial, não de acusação ou, menos ainda, de operação ou instrução policial. Estas últimas, menores, seriam tarefas cometidas ao ministério público (PGR) e à polícia administrativa (PF).
Só que não é assim, com forte esquema positivista, que o estado se aparelha para lidar com a defesa de valores socialmente úteis e relevantes ao funcionamento e ao desenvolvimento das relações sociais, públicas e privadas. Na constituição e nas leis, as funções primárias (legislar, administrar e julgar) são distribuídas indistintamente entre os poderes do Estado em conjunto com as competências da Administração Pública. É claro que, quanto a criação, a declaração, a execução e a extinção de direitos a Constituição distribui competências e reserva monopólios aos órgãos especializados, porém, sem interditar a iniciativa e a atividade concorrente, alternativa ou subsidiária.
A propositura da ação penal, na hipótese em que uma atividade investigativa conclua por afirmar a existência do fato ilícito e apontar a possível autoria, é prerrogativa do órgão ministerial cuja competência é também organizada horizontal e verticalmente, implicando diversidade de destinatários e acessos.
Ora, a portaria objetiva apurar ofensas e ameaças  que possam tipificar crimes praticados na globosfera da Internet.  A dimensão do espaço virtual que abriga esse tipo de prática delituosa ignora as dimensões analógicas do espaço físico e transforma o problema temporal em um contínuo na linha do tempo.
Por outro lado, uma única central de TI reúne condições tecnológicas para realizar e esgotar todas as possibilidades de busca e investigação. Isto só é possível mediante conceitos digitais e práticas computacionais e comunicacionais. 
Num ambiente de risco material e moral, o conceito de órgão público de competências fechadas e especializadas - condicionado  por limitações à possibilidade físico-temporal de alcançar os fatos que deve sujeitar à proximidade da cognição  para formar juízo provisório e imediato, como processo de preparação ao ato de julgar - foi enviado para o espaço (embora se possa encaminhar já direto para o túmulo, transitando o suporte tecnológico para o mundo digital).
O que não se pode fazer é aquilo que a Lava Jato andou abusando na execução da tarefa de excluir o Lula da eleição de 2018 – o que possibilitou a ascensão de um presidente fascista que chegou ao cargo carregado sobre os ombros de milicianos:  os operadores trataram os fatos com a criatividade ficcionista tipo Netflix. O direito pode suportar, dentro de marcos epistemológicos, multiplicidade de manejo porque, na prática, é critério teórico de interpretação da realidade. Mas a veracidade dos fatos experimentados da realidade histórica, não.
O ponto de partida é de fácil compreensão: o Regimento interno do STF reconhece na Administração da Presidência do órgão constitucional aptidão para exercer o poder de polícia. Policia administrativa, da mesma natureza daquela que é exercida pela Polícia Federal, por exemplo.
Pelo art. 13, I, do RISTF é atribuição do presidente (I) velar pelas prerrogativas do Tribunal. Como? Executando e fazendo cumprir (respeitar) os despachos, decisões monocráticas, resoluções, deliberações dos órgãos de interesse institucional, facultada a delegação de atribuições para a prática de atos processuais não decisórios (VI). Essas prerrogativas estão asseguradas aos membros tribunal no art. 16: “Os Ministros têm as prerrogativas, garantias, direitos e incompatibilidades inerentes ao exercício da magistratura.”  
Como as instituições não são construídas para realizar trabalho inútil, é inerente ao exercício da magistratura que seja disponibilizado aos seus agentes todos os recursos de que necessitam para conhecer e julgar os fatos produzidos pela conduta humana. São recursos jurídicos, financeiros, humanos, materiais, tecnológicos e morais a serem empregados para acessar informações e, pelo cruzamento delas,  processar decisões eficazes.  A eficácia das decisões judicias depende muito da força do poder simbólico da instituição jurisdicional: legitimidade social e autoridade política, estes os recursos morais inerentes ao poder social do juiz.  O mais importante e valoroso bem da magistratura tem suporte neste recurso moral. Por isto, a mais grave ofensa às  prerrogativas, garantias, direitos e poderes inerentes ao exercício da magistratura são expressas na conduta dos que pregam ódio aos magistrados e insurreição à magistratura do País. 
É por esta razão que os aparelhos coadjuvantes à função jurisdicional - na estrutura do Estado Democrático de Direito - devem ser protegidos com as mesmas garantias que a Constituição afirma ser inerente à Magistratura:  Liberdade limitada apenas pela Legalidade e Independência em relação ao poder político que exerce a governança (partidos político-ideológicos). O Ministério Público e a Polícia Administrativa devem atuar como instituições republicanas compromissadas com o Estado e servindo à Sociedade. 
O fato de ser possível ao STF instaurar e presidir Inquéritos Policiais não significa que pode prescindir das funções especializadas cumpridas por esses dois aparelhos coadjuvantes.  Significa, apenas, que - quando as prerrogativas, garantias, direitos e poderes inerentes ao exercício da magistratura estiverem expostos ao risco de dano material ou moral - o STF está autorizado a trazer para o ambiente de segurança e controle direto da própria Casa os agentes e o exercício das próprias funções. Esta possibilidade é, sem dúvida, inerente à função de guardião da Soberania que lhe é reservada nos tempos e ambientes de paz. 
Vejamos agora como esta questão está disciplinada no RI do STF.
Para assegurar a eficácia do acesso às informações atribuídas ao corpo administrativo-policial, o RISTF, em seu art. 42, atribui ao órgão da presidência poderes claros: “O Presidente responde pela polícia do Tribunal. No exercício dessa atribuição pode requisitar o auxílio de outras autoridades, quando necessário.”
O exercício do poder de polícia está disciplinado nos dispositivos seguintes:
Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.
§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.
Essas normas não deixam margem a dificuldades de interpretação sendo, pois, aparentemente, de fácil aplicação.
O art. 43 autoriza ao presidente a instauração do Inquérito, porque as ofensas cometidas pela Internet envolveram autoridades com exercício no STF. Competência fixada em razão do critério pessoal, isto é, das autoridades ofendidas.
O caput do 43 faz menção à infração à lei penal praticada na sede ou dependência do Tribunal. Alguém, poderia argumentar que as condutas a investigar teriam ocorrido fora da sede do Tribunal.
Está evidente que o § 1º - ao incluir na incidência da norma, genericamente, “os demais casos” de ofensa aos membros do STF -  desautoriza uma interpretação restritiva, tal como se tem feito alguns críticos com base em compreensão analógica da gestão administrativo-policial dos casos.  
Ora, seria absurdo imaginar que uma ofensa praticada no espaço físico da portaria do STF estaria controlável pelo guardião das prerrogativas dos ministros, mas, uma ofensa praticada contra essas prerrogativas, publicadas nas redes sociais da Internet, de visibilidade mundial e online, não poderia entrar na órbita de seu dever de zelar pelo normal e respeitoso funcionamento da Corte.
Às páginas da web inexistem barreiras físicas como limites espaciais, materiais, morais ou funcionais.
O inquérito é uma peça administrativa, não jurisdicional. É uma atividade técnica submetida ao princípio da legalidade, como toda atividade pública. Não há, no plano das leis naturais e nem na esfera das leis sociais, nada que impeça ao presidente convocar outras autoridades administrativas ou policiais competentes para auxiliar a relatoria, cuja escolha e delegação da tarefa é da competência e responsabilidade pessoal do presidente do STF (43, caput, final).
Parece suficientemente evidenciado que o RISTF autoriza  ao presidente do STF instaurar ou, facultativamente, requisitar a instauração de Inquéritos a outra autoridade, também competente. Essa escolha deve ser feita por ato pessoal e discricionário do presidente, que se pautará por critério de conveniência e oportunidade.
Estamos experimentando tempos em que núcleo invisível de poder internacional, para assegurar a satisfação dos interesses econômicos e financeiros dos mercados de seu país, estimula a autoproclamação e ao exercício de poderes institucionais do Estado, usurpados por atores pincelados dentro de outros órgãos do mesmo Estado, que – aparentemente - recebem proteção para que se encorajem a confrontar a autoridade legitimada por investidura constitucional.  Internamente, há sempre o risco de o governo - a que se vincula os órgãos coadjuvantes da jurisdição - cair em mãos de grupos autoritários e antidemocráticos que consideram necessário submeter ao seu programa ideológico todas as outras instituições que interagem na formação da vontade governamental, como o Legislativo e o Judiciário.  Não há função soberana que se possa exercer sem que haja mecanismo prático a possibilitar a ação direta e imediata como os tempos de crise exigem.  Não há que se tergiversar:  são tempos difíceis, graves, demolidores, inseguros e perigosos para a vida do país e para a democracia.
Tempos em que a ideia de soberania tem de transitar para o estágio de exercício prático: fidelidade à Constituição com coragem, determinação, vigilância e intransigência!
Quem tenha poder para evitar a demolição às instituições democráticas e à Ordem Constitucional que responda com sabedoria, prontidão e firmeza!

Ver também:
Informação sobre caso de Infidelidade Institucional < >

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