As mariposa, a lâmpida e o desânimo


Por RUI DAHER

Parte 1jornal ggn,18/01/2017 


Tenho evitado tratar de forma séria as política e economia brasileiras depois do golpe que tirou Dilma Rousseff da Presidência. Tentei por algum tempo até o limite de minha paciência. Parei quando percebi o enxame de manifestações nas folhas e telas cotidianas tratando o tema sob diversos ângulos. Mesmo das semanais andanças agrárias pedi licença por um tempo.

A pantomima interna excedeu o patético e, pior, no meu caso, desaguou em episódios passados, inúmeras vezes vivenciados, que me fizeram sabedor da fragilidade das posições distributivas à esquerda diante de uma elite econômica que até parou com as esmolas. Hoje em dia, carrega HP financeira para calcular o quanto irá perder tirando da aplicação o valor do óbolo. Estranho País, este.
Fato é que, furioso, tenho-me valido de galhofa, chacota e deboches. Penso assim melhor estocar fígados Dorianos, Temerosos e Nevados.

Sábado passado, porém, em reunião noturna na precária Redação do BRD/FD [Blog-Boteco Rui Daher/O Fígado Diário], Nestor e Pestana criticaram a minha caluda diante da "Pátria em risco". Lembrei-os de que pátria é o refúgio dos canalhas e a cada ano cresce o nosso patriotismo. Faltará espaço.

Mesmo assim, prometi-lhes escrever um editorial, que aqui faço em três partes, para as quais peço paciência.


Parte 1 

O Planeta no Divã

"As mariposa quando chega o frio/Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá"



Só mesmo o gênio de Adoniran Barbosa (1910-1982) poderia antecipar o desenrolar do capitalismo e o papel das esquerdas, a partir deste novo século. Pensem nas mariposas representadas pelas economias hegemônicas e na lâmpada como o modelo de capitalismo que assim as aqueceu.

Pois bem, a "lâmpida" apagou. Nela não mais "as mariposa" se esquentarão. À esquerda caberá não acionar o interruptor e reacendê-la.

Comecemos pelo fim, mas depois poderemos voltar, década a década, até Keynes. A notícia mais recente nas folhas e telas cotidianas vem do badalado evento econômico, sempre em Davos, Suíça, óbvio país-símbolo do capital financeiro, espúrio ou não, e dos graciosos relógios cucos. No quentinho dos hotéis, participantes do Fórum se propõem a "colocar o capitalismo no divã". Sugiro um outro, ao lado, para as esquerdas também necessitadas.

O protagonismo em Davos descansou na felicidade dos primeiros anos do milênio, se assustou entre 2007/2009, se ligou, e agora parte para o revisionismo. Desânimo que se não tratado chegará à depressão.

As esquerdas não sacaram ainda que não somos nós, o siri e o cacete que precisamos de refundação, novos caminhos, autocrítica, mas sim o capitalismo no paroxismo financeiro a que chegou, até com o auxílio luxuoso de um pandeiro verde-amarelo e malandro.

A História não é pródiga em mostrar exemplos de sociedades com longos períodos de menor desigualdade social. A própria divisão internacional do trabalho provocou isso entre os países, em séculos de desenvolvimento.

Daí discutir com muito fervor o Brasil de hoje ser apenas uma distração política, repetitiva, tantas oportunidades perdidas protagonizadas por bufões de um circo mambembe envelhecido sobre estruturas enferrujadas.

O período pós-Segunda Guerra teve duas etapas: a primeira, em parte regulada nas teorias de Keynes, trouxe a hegemonia norte-americana e a recuperação da Europa e do Japão, até desembocar na inflação generalizada da década de 1970; a segunda, da globalização, catalisada pelas reformas de Deng Xiaoping, a partir de 1978, na China, permitiu corrigir o caminho da primeira. Somadas, criaram altas reservas no hemisfério norte que deixou escorrerem franjas aos países emergentes e alguns poucos pobres.

Até que no sétimo dia, Ele descansou, entrou em férias, que poderão ser eternas. O mesmo que dizem Dele. Se foram merecidas não sei, mas que bagunçou o planeta não há dúvida.

As insólitas guerras e incursões promovidas pela aliança EUA, Grã-Bretanha e França, em Iraque, Irã, Líbia, na esteira do 11 de setembro, simulando levar democracia na algibeira, deixaram destruição. Ampliaram-se os tumultos no Oriente Médio, com refugiados desintegrando a estabilidade europeia. A Rússia é Putin na Chechênia; os EUA são Trump na OMC; a China é Xi Jiping, carimbo de economia de mercado e lacre de liberdade até o limite dos ditames do Partido Comunista Chinês.

E para tal imbróglio, o Brasil tem pensadores como Michel Temer, José Serra, Henrique Meirelles. Se não for deboche, haja divã em Davos.

No próximo capítulo, os números para as planilhas do inferno.


O capitalismo em transição


"As mariposa quando chega o frio/Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá"

Longe de mim, na primeira parte deste editorial do BRD, ao usar a imagem das lâmpadas se apagando para as mariposas, inferir que não arrumariam outras fontes para se aquecerem. Menos ainda, pensar em sua extinção, o que permitiria às esquerdas se acomodarem nos divãs da teoria e abandonar a práxis, pois as pragas que vêm do capitalismo estariam também extintas.

Não sonho, as mariposas vieram para ficar. Apenas transgenias recentes as modificaram a ponto de fazer expandirem, ao extremo, os incômodos que trazem ao planeta. É do filósofo brasileiro Paulo Arantes a frase: "A continuar assim, o capitalismo corre o risco de morrer de overdose", preocupação que as folhas e telas cotidianas dizem ter chegado a Davos, na Suíça.

Entre 1950 e 2015, foi possível à economia mundial aumentar a renda real média per capita em 460% (2,7% ao ano), a extrema pobreza cair de 72% para 10%, e a expectativa de vida subir para os 71 anos.

Bem, média é média, sabemos, o que nem sempre significa todos numa boa.

Da parte das potências ocidentais e da Rússia, isso ocorreu em base, principalmente, de acordos de comércio, industrialização, inovação tecnológica e, quando não, aproveitando-se de invasões de países para garantir governos títeres. A partir da segunda metade do período, o reforço veio das demanda e especialização em países asiáticos, sobretudo China, Índia e Coreia do Sul.   

Esse bom funcionamento do capitalismo foi determinante para a queda das economias que praticavam o socialismo real em diversos graus, e baseava-se em permitir altos ganhos de renda e patrimônio às elites, desde que elas distribuíssem suas mercadorias em condições de estreitar a base da pirâmide social.

Uma década de mutações pós 2007, no entanto, fez as principais economias capitalistas ocidentais perderem crescimento e cederem à competitividade asiática, o que trouxe aumento da desigualdade social, perda de postos de trabalho, sobretudo dos menos qualificados, agravada pela contínua inovação em tecnologia.

As recuperações posteriores ao baque causado pela esbórnia financeira, foram relativamente fracas, o que fez as mazelas se pronunciarem de várias formas, como exposto na parte 1.

O tecido social se esgarçou no momento em que percebeu injusto os governos e seus bancos centrais privilegiarem socorrer as instituições financeiras e esquecerem as pessoas que perdiam casas e empregos. Foram-se, assim, a crença na justiça e na competência das elites econômicas e políticas. Era impossível esconder aa cara da quadrilha que destruiu seus sonhos.

Prenunciava-se o início do término de um período econômico, pós-Segunda Guerra, liderado pelos EUA, e surgia a possibilidade de deslocamento do polo de hegemonia para a China.

É claro que para o esgotamento das principais economias ocidentais ainda tem muito chão a percorrer. Estados Unidos, União Europeia e Japão ainda detêm 36% da produção mundial em paridade de poder de compra. Além disso, dominam os principais conglomerados de empresas, a inovação tecnológica, as mais importantes instituições de ensino e, fundamental, o maior arsenal de armas.

Com um senão. Cada vez é menor sua exclusividade nessas hegemonias. Não fosse assim, Donald Trump e Xi Jiping não estariam se encarando em Davos.

No próximo capítulo, termino com o Brasil, antes que a Federação de Corporações não o faço por mim. Então, volto à galhofa, com a sensação de ter cumprido a promessa feita a Nestor e Pestana, mas com a frustração de não ter sido lido ou comentado por ninguém. Tanta a minha falta de sorte que vem o Teori - que Deus o tenha – e morre no mesmo dia de minha publicação.



Um capitalismo de esquerda?




"As mariposa quando chega o frio/Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá"
Nos dois capítulos anteriores, sem qualquer pretensão de profundidade acadêmica, propus discutir aspectos dos auge e declínio dos ciclos capitalistas, a partir da Segunda Guerra.

Parti do que li em Bourdieu (1930-2002), Hobsbawm (1917-2012), Lasch (1932-1994) e, mais recentemente, em Mariana Mazzucato, Thomas Piketty, Larry Summers, Martin Wolf, Dani Rodrik, e alguns poucos economistas brasileiros que não dependem de salários pagos por banqueiros.

Não terminei de ler, mas já gostei, "17 Contradições e o Fim do Capitalismo", do geógrafo David Harvey (Editora Boitempo, 2016). Reconheço aí, no entanto, uma bibliografia manca. Faltaram os pensamentos de Roberto Justus, Ronaldo Caiado e um certo Kim, jovem oriental que escreve na Folha de São Paulo.

Tudo me fez pensar não ser a esquerda a precisar de autocrítica. Suas propostas sempre foram, em essência, críticas à desigualdade social e suas decorrências. Fariam crescer ao extremo as mazelas no planeta. Sem emprego e distribuição de renda não há demanda, sem consumo não há produção, investimento, emprego e renda, formando um ciclo perverso, que duas vezes no século passado foi resolvido com Guerras Mundiais.

Os medíocres negam tal possibilidade. Pensam suas panças empanturradas incólumes e insistem em modelos com prazos de validade já vencidos. Desde o pós-crise, o que a partir de 2014 prejudicou enormemente o Brasil, baixaram os juros esperando investimentos e consumo que pouco vieram. Tentavam formar demanda para ter lucro e reinvestir.

Exceção à Federação de Corporações, onde se faz o contrário. Juros estratosféricos para controlar inflação em economia recessiva.

Nos EUA, os empregos fabris caíram de 20 milhões para 12,3 milhões, entre 1980 e 2015. Influíram, os movimentos de outsourcing, o avanço da tecnologia, e a crise 2007/09, atingindo os trabalhadores menos qualificados. Mesmo a recuperação nos últimos anos da década atual não trouxe de volta 20% dos postos de trabalho perdidos. Colocando os imigrantes na parada do rancor, Donald Trump foi eleito presidente.

O mais recente tapa na cara de um modelo que não reconhece seu estado terminal veio simultâneo ao convescote suíço, em Davos. A Oxfam International, organização voltada a combater a pobreza, bateu o pênalti, goleiro num canto, bola no outro, e gol!

Oito homens são proprietários de riqueza igual à de 3,6 bilhões de pessoas, metade da população mundial. Se incluir o trio MSN, do Barcelona, forma um time imbatível no quesito "temos talento, trabalhamos, e muito herdamos".

Mais? Sete entre cada 10 pessoas vivem em países que, nos últimos 30 anos, viram crescer a desigualdade; mantida a tendência atual de diferença de pagamento entre homens e mulheres, estas precisarão de 170 anos para se equiparar; a evasão fiscal nas grandes corporações em países pobres excede os 100 bilhões de dólares, equivalentes a dar educação para os 124 milhões de crianças que não estão na escola ou diminuir a mortalidade infantil através de serviços de saúde.

Embora apenas confirme o que muitos já vêm dizendo e escrevendo há décadas, o estudo completo, citando as fontes e métodos usados, pode ser obtido no site da Oxfam International.

De 2010 a 2015, segundo o Crédit Suisse, passou de 68,4% para 71,0% a população mundial que ganha até US$ 10 mil/ano. Caso é: o consumo dos mais ricos é limitado pela satisfação; o dos mais pobres é acelerado pela necessidade.

Há que baixar o espírito das esquerdas no capitalismo para que ele não passe a respirar com a ajuda de aparelhos, que mais desgraças trarão ao planeta.

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