IV – Funções Sociais, prestígio, reputação, legitimidade e poder social.

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Às vezes os confrontos são necessários. Acho que naquele momento foi necessário. Ali se mostrou que havia um tipo de conúbio espúrio de polícia, juiz e membro do Ministério Público. Era como a jabuticaba, só existiria no Brasil: a polícia de alguma forma mandaria em toda a cena judiciária. ” (Juiz STF Gilmar Mendes/ na Folha de S.Paulo).

 Do ponto de vista da atuação ou do exercício da função jurisdicional, não existe e nunca existiu problema de ‘natureza social’ relacionado com alteração ou ameaça à Ordem Pública na comunidade de Terenos.  Insatisfações e reclamações dos destinatários contra os serviços públicos sempre existiram e sempre existirão.  Conviver com a crítica e com a pressão popular é um imperativo da democracia. É essa insaciável pretensão que a sociedade tem, de viver e conviver sob o manto da ordem púbica e da segurança jurídica, que funciona como referência à prática e ao aperfeiçoamento de nosso trabalho. 
Por outro lado, não há motivo para maiores ilusões: nenhuma das práticas perversas que o homem inventou na história da humanidade e que tenha sido proibida ou combatida, quer pela moral religiosa ou pela coercibilidade jurídica, jamais foi ou será extinta da face da terra. 
Então, a prostituição, as drogas, o homicídio, os furtos jamais serão extintos.  Nesse sentido, o viver e o possuir carregam sempre consigo uma margem de risco!  O desafio do sistema de controle social não é ‘zerar’ essa margem de risco, mas sim, de mantê-la sob um nível de baixa incidência, isto é, num nível razoável de tolerância.
 Vivemos num País no qual a elite estimula e promove a desigualdade social: numa sociedade marcada por uma profunda diferença entre classes sociais, determinada por diferentes níveis de vida que se opõem devido a um fosso que se abre entre ricos e pobres. Pois bem, neste ambiente, a questão da ameaça ao exercício da propriedade relativamente ao patrimônio móvel põe a atividade policial sob o mais elevado risco de disfuncionalidade.  Numa época de crescente e complexa criminalidade, querer exigir da polícia que mobilize a escassez de seus recursos humanos, materiais e tecnológicos para recuperar aparelhos eletrônicos de alta rotatividade e obsolescência é não ter consciência dos verdadeiros e graves problemas desta época de capitalismo industrial avançado, de globalização dos mercados e hegemonia incontrastável dos banqueiros e rentistas, marcada pela falsa facilidade de acesso ao consumo por um perverso mecanismo de escravização do povo às fontes de crediário.  Esse sistema já se apropriou do controle policial, colocando-o a seu serviço exclusivo e não mais da virtude e dos valores morais!
 Aqui na comunidade, porém, o fato é que a polícia vive sob permanente pressão de dois mundos que se antagonizam quanto ao tipo de exigência que impõe: de um lado, o povo cobrando resultado e eficiência, significando isto que todos os perturbadores da tranquilidade alheia sejam postos atrás das grades das celas.  De outro, os operadores intelectuais do Direito cobrando respeito aos direitos humanos, à liberdade e ao postulado da presunção de inocência.  Entre um polo e outro desse embate, os problemas de ordem prática causados por um sistema carcerário falidoÉ assim que a sociedade brasileira experimenta o inferno da disfuncionalidade do sistema de controle social neste momento de transição histórica para a pós-modernidade.  É cada vez maior a distância entre as intenções e os gestos.  O Estado perde, aceleradamente, a capacidade de cumprir com suas promessas no campo da Segurança Pública e da Segurança jurídica.  No seio da sociedade, porém, o povo ignora a situação de faz de contas: continua acreditando que a prisão seja uma panaceia capaz de resolver todos os seus problemas...
 Para além dos problemas de disfuncionalidade institucional, aqui em Terenos os agentes policiais lotados na Delegacia, constituindo organização criminosa, conseguiram a proeza de reduzir o prestígio e a credibilidade da instituição a níveis altamente comprometedores. 
Do ponto de vista do controle jurisdicional, são inúmeras as decisões e sentenças que esbarram diante da impossibilidade de aproveitar as provas que foram produzidas pela polícia para instruir o processo.  A perda da confiança no trabalho profissional da polícia judiciária representa, por si só, um problema da mais alta gravidade, na medida em que põe o órgão jurisdicional numa posição de tensão permanente, obrigando ao juiz acercar-se de cuidados para não ser levado a erro ou não se sentir enganado.  Trabalha-se sob um clima de desconfiança, no sentido de se conviver com uma permanente expectativa de temor ao erro.   Em ambiente assim, de alta manipulação, o desafio do juiz não é mais o de buscar a justiça, mas sim, de livrar-se do erro judiciário (conferir, a título de exemplificação os Anexos 9 e 10, onde estão relatadas absurdas situações de manipulação das provas, tanto visando a condenação de uns, quanto a absolvição de outros – sempre os mesmos...PPP)
 Esse ambiente tornou-se mais agudo e pesado após a prisão dos policiais acusados de concussão.   É evidente que a relação jurisdição-polícia nos últimos 12 meses vem experimentando um processo de crescente tensão, de silencioso confronto entre o aparelho policial e o órgão jurisdicional.    Na origem dos desencontros, basicamente, disputas caracterizadas por divergências entre a autoridade policial e a autoridade jurisdicional, quanto ao emprego do tratamento penal que cada núcleo julgou adequado dar a alguns casos notórios ocorridos nos últimos três anos.   Em termos práticos, a questão é esta: a polícia, desprovida de recursos financeiros, técnicos e tecnológicos, tem por prática trabalhar a investigação do crime e a produção da prova mediante a prisão do flagrado ou do suspeito.   Esse ato de prender o indiciado adquire diversos sentidos, uns culturalmente simbólicos voltados para a perspectiva ambiental em que se forma a opinião pública e, outros, tecnicamente valorativos, do ponto de vista do controle que o sistema jurisdicional faz quanto a validade e eficácia das prisões e de outras medidas coercitivas que a polícia tem adotado para além de seu papel institucional, como o recurso de usar à mídia e à Internet visando atingir o senso comum e, assim, antecipar sanções e tornando poderosa a ação policial, no imaginário popular.  No horizonte das contradições que se formam do embate e que resulta de práticas que extrapolam o caráter de instrumentalidade processual, é que se desenvolvem as tensões, típicas de um processo de disputa de poder: quem é “melhor para a sociedade”, a polícia ou o judiciário?
 Esse confronto passa a ser favorecido, de um lado,  pelo fato de a sociedade brasileira estar experimentando um fluxo amplo de práticas democráticas, de debates sociais (Internet) e diálogos institucionais (Conselhos, Fóruns, Sindicatos e Associações); de outro, porque – no plano onde conhecimento e ação precisam se encontrar  – o esmaecimento dos paradigmas leva ao enfraquecimento dos dogmas e essa situação de anomia causa estragos de monta: enfraquece o comando, põe em dúvida a proposição da autoridade, quando não, dá-se o pior: detona a própria autoridade moral do agente público. 
A autoridade, insistentemente bombardeada por uma mídia conduzida por pessoas que estão se especializando em assassinar reputações, como forma de obter maior audiência e dinheiro, torna-se refém de meia dúzia de famílias, obrigada a responder às pressões políticas e econômicas que essa mídia exerce, ao mesmo tempo em que proclama para si mais liberdade para mentir e manipular ao povo, como forma de evitar efeitos de responsabilidade política e econômica pelos danos que ajuda causar ao País e a seu povo.  
Nesse ambiente favorável aos abusos, assistimos à evolução de uma parceria tática entre polícia e mídia jornalística – jornais e TV -  que leva à espetacularização de prisões “intuitivas” e a condenações “sumárias”, da parte do senso comum, por julgamentos superficiais.   Suprime-se, por essa via que afasta as dificuldades impostas pelo tempo e pelo espaço, os tribunais institucionais da racionalidade instrumental do Estado Moderno; transfere-se o jogo da Justiça para o ambiente difuso em que os preconceitos do senso comum encontram o leito fácil da vazão dos instintos primitivos de vingança e autoritarismo
Infelizmente, esse quadro de transformações que responde a impulsos individualistas, de dúvidas e incertezas tem paralisado a muitos de nós.  As reações, quando se dão, também se pautam por respostas individualistas de caráter ad hoc.   Isto é uma das características das mudanças de ciclos históricos nas sociedades organizadas: em meio à crise de transição paradigmática, cada sujeito histórico defende a instrumentalidade funcional de seu posto (seu cargo ou sua função) contra os ataques de usurpação da função ou do poder que se concentra juridicamente na esfera de seu órgão institucional.
 Aparentemente, algum setor policial tem considerado uma forma de negação de seu trabalho o fato de juízes e tribunais terem assumido posição mais coerente no sentido de fazer valer os direitos e garantias que protegem a liberdade e consagram o princípio de inocência, libertando presos comuns como forma de combater abusos que se tem cometido com o excesso de prisões cautelares e provisórias.   Na verdade, observa-se que quanto maior é o status das pessoas envolvidas como suspeitas da autoria de crime, seja na esfera econômica, política ou social, maior é o interesse da mídia no caso.  A opinião pública tem sede de ‘sangue-puro’.  A prisão de ‘figuras e figurões’ representa um marketing importante para afirmação da reputação social da polícia.
 Aqui na comarca de Terenos as tensões entre polícia e jurisdição tem surgido e se ampliado dentro de um confronto em que o juízo criminal tem adotado medidas concretas para evitar a montagem de situações em que as dignidades das pessoas possam sofrer danos irreparáveis por conta de ‘assassinatos de reputação’.
 A primeira dessas situações ocorreu em 2007, quando o irmão de um vereador foi assassinado durante uma caçada na zona rural e a autoridade policial representou por sua prisão preventiva, estando toda mídia da Capital mobilizada para divulgar o ato da prisão.  O juízo considerou frágeis e insubsistentes os motivos e as provas apresentadas como fundamento da cautela.  A autoridade policial insistiu no pedido da prisão e pediu reconsideração da decisão, o que novamente foi indeferido.  Quando o juiz titular se afastou para gozo de férias, o pedido foi novamente formulado ao juiz substituto.  Quando retornou das férias, o juiz repreendeu à autoridade policial pela atitude de querer fazer valer a sua vontade com uso de um recurso de poder baseado na manipulação ao novo juiz, que desconhecia a trama dos fatos (A decisão que causou inconformismo ao policial está no Anexo 7).
 A segunda crise ocorreu em 2009, quando a autoridade policial tornou concreta a ameaça que fez de divulgar o nome e a foto de um indiciado em crime de estupro por violência presumida, caso este não comparece à delegacia para ser qualificado e interrogado no prazo que concedeu ao advogado.  A fotografia do funcionário do Banco do Brasil foi publicada em páginas da Internet contendo no peito a inscrição “PROCURADO” e a indicação de EstupradorO Advogado apresentou reclamação ao juízo criminal e pediu providências para coibir o abuso. O delegado foi chamado a prestar esclarecimentos e o juízo decidiu determinar que a notícia e a imagem do indiciado fossem imediatamente retirada da mídia, concedendo-lhe salvo conduto. O delegado de polícia representou junto ao Ministério Público requerendo o afastamento do juízo do processo, sob a alegação de suspeição.  O juiz manteve-se na presidência do processo (ver Anexo 8).
 Finalmente, ainda existem focos de tensão na relação do juízo com a polícia por conta dos desdobramentos do processo em que cinco policiais civis respondem por concussão e formação de quadrilha.  A vítima e as testemunhas apresentaram sucessivas representações indicando provas que apontam para o fato de virem sofrendo ameaças e perturbações ao longo do processo.  O Ministério Público chegou a requerer a adoção de medidas de proteção à testemunha, mas o próprio advogado da vítima se opõe a providência tão drástica. As provas dessas ameaças têm sido encaminhadas à Corregedoria-Geral de polícia para investigações e providências.   A Polícia Militar informou a este juízo que instaurou sindicância para apurar eventual conduta de abuso de poder de algum de seus quadros, tendo em conta a circunstância de a vítima do processo de concussão ter sido, após a prisão dos policiais civis, abordado sucessiva e sistematicamente nas ruas da cidade quando dirigia sua caminhonete e, em todas essas abordagens, ter sido notificado de multa por mero capricho e pretexto de Policiais Militares.
 A chácara onde reside e trabalha um dos filhos do juiz de direito, na zona rural próxima à cidade de Terenos, foi, durante um período de cerca de 30 dias, objeto de visitas desconhecidas através de três ou quatro pessoas que ali compareciam à noite, dentro de um veículo sem placas, e ficavam parados próximo ao portão de entrada.  Depois que foram instalados equipamentos de filmagem e de segurança, as visitas cessaram. 

Conclusão.

 Somente a circunstância de a sociedade brasileira estar transitando historicamente por um período de enfraquecimento dos dogmas que estão na base da estrutura do Estado Moderno torna compreensível que uma autoridade republicana, do porte de um juiz de direito, tenha que sacrificar o tempo que dedicaria à produção de sua atividade institucional – adjudicação de conflitos pelo método de interpretação e aplicação da lei  – para ficar prestando esclarecimentos sobre os fundamentos fáticos de suas decisões e sentenças  jurisdicionais que - por exigência constitucional do sistema de controle social – são necessariamente fundamentadas.   Uma decisão jurisdicional vale e se justifica pelo seu próprio pronunciamento. Este só é jurisdicional se fundamentado juridicamente.  O sistema da família Ocidental do Direito está solidamente institucionalizado, desde uma tradição que remonta à Roma: à falibilidade da decisão jurisdicional existe um só sistema de revisão: o recursal, a ser operado por partícipes do processo: o Ministério Público e a Advocacia, dentro do devido processo legal.
 Este juízo entende que os documentos encaminhados à Corregedoria-Geral de Justiça por redirecionamento da Diretoria de Polícia da Capital constituem mais um recurso de uso de poder não institucionalizado, utilizado pela autoridade policial de Terenos, dentro da estratégia política de fazer valer sua pretensão de determinar o comportamento do juiz criminal da comarca de Terenos relativamente à aprovação de seus atos administrativos ou discricionários.  Como se pode constatar do depoimento colhido por este juízo no Anexo 3, o delegado de polícia utilizou-se de outros recursos – como o de mandar recados por pessoas que têm acesso pessoal ao círculo de amizade do juiz
Na verdade, o documento deflagrador do procedimento administrativo constitui prova suficiente para indicar que a autoridade policial possa ter estado cometendo crime de prevaricação: deixou de praticar indevidamente ato de seu ofício, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, quando passou a divulgar perante a comunidade a ideia de que ‘os furtos estavam fora de controle porque a justiça soltava os bandidos que a polícia prendia’. (Quando, na verdade, J. declarou, dentro da delegacia de polícia, que era o próprio delegado que o prendia e o soltava, sem mesmo lavrar boletim de ocorrência, em troca de informações... Só disto?).
Do mesmo modo, existe forte indício de que alguns policiais militares também teriam aderido a tal campanha que visa atingir à reputação do Poder Judiciário no seio da comunidade, quando adotaram o mesmo tipo de conduta omissiva: recusaram-se a perseguir o autor de um furto alegando que não adiantaria nada prendê-lo, porque o juiz, em seguida, iria soltá-lo. (O comando da PM local, todos sabem, está sob ‘controle político’ da autoridade municipal... Isto faz parte de seu ‘capital’ político)
Por tais motivos, comunico à Douta Corregedoria-Geral de Justiça que este juízo está encaminhando, na data de hoje, expediente ao representante do Ministério Público local para que adote as medidas que julgar necessárias para apuração das responsabilidades quanto a eventual configuração do crime de prevaricação em face dos policiais civis e militares que sejam identificados como eventuais transgressores do tipo do Art. 319 do Código Penal.

  Terenos/MS, 30 de abril de 2009.

    Juiz José Berlange Andrade


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